O Orçamento do Estado para 2018 traz muitas novidades para os trabalhadores independentes — e algumas já estão a motivar protestos entre advogados, fiscalistas, economistas e pequenos empresários da restauração. Depois de gorada a hipótese de alargar a isenção de IVA para recibos verdes para 20 mil euros — uma medida que chegou a estar em cima da mesa –, as alterações introduzidas prometem não ser pacíficas. Na prática, estes contribuintes vão ter de apresentar despesas para beneficiarem das deduções automáticas que a lei lhes atribui e alguns podem mesmo vir a pagar mais IRS.

O Governo está a dar com uma mão, para tirar com a outra. Quase parece que o Governo está a tentar ir buscar as receitas que vai perder com as mexidas de escalões no IRS aos trabalhadores independentes”, defende António Schwalbach, jurista com especialidade em gestão fiscal e contabilidade e coordenador da equipa fiscal da Telles, ao Observador. “Está a matar o regime simplificado como ele existe. O Governo está a transformar o Estado numa máquina fiscal de má fé à procura de receita“, argumenta.

Uma posição partilhada por Luis Leon, fiscalista da Deloitte. Em declarações à Agência Lusa, o especialista em IRS defendeu que isto “pode ser o princípio do fim do regime simplificado do IRS“, que “deixará de ser simplificado e passará a ser um regime complicado”.

Até ao momento, os trabalhadores que faturem até 200 mil euros anuais podem optar por pagar IRS através do chamado regime simplificado, dispensando a entrega de faturas. O IRS incide apenas sobre uma percentagem da faturação, presumindo-se que uma determinada percentagem corresponde a encargos. São os diferentes coeficientes que determinam que rendimento é que deve pagar IRS e que fatia corresponde a custos inerentes.

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No caso dos profissionais liberais — advogados, por exemplo — presume-se que 25% do que faturam são despesas de atividade. Ou seja, pagam IRS sobre 75% do total de rendimento. Outro exemplo: no caso dos comerciantes e empresários da restauração, o regime simplificado presume que 85% do que faturam é despesa – pagam IRS apenas sobre 15% do total. Já os empresários do alojamento local, pagam IRS sobre 35% do rendimentos, presumindo-se que 65% é despesa.

Agora, se a proposta tal como consta no Orçamento for aprovada, os trabalhadores independentes que faturem mais de 16.416 por ano — cerca de 1.368 euros por mês — só vão poder deduzir automaticamente 4.104 euros. A partir daí, se quiser ter a dedução dos 25%, terá de apresentar faturas relacionadas com a atividade — prestações de serviços e aquisições de bens, encargos com imóveis ou despesas com salários de pessoal, por exemplo.

Um trabalhador que declare 60 mil euros de rendimento anual, vê a sua base tributável crescer quase dez mil euros, dos anteriores 45 mil euros (75% do total) para cerca de 55 mil euros, menos o coeficiente de 4.104 euros, o patamar mínimo de dedução automática. No final do ano, terá de pagar mais IRS, a não ser que consiga deduzir as tais despesas, apresentando as faturas que o comprovem.

Por outro lado, nos níveis mais baixos de rendimento haverá um desagravamento do imposto pago resultante da revisão dos escalões e da eliminação da sobretaxa. “Estas medidas podem mitigar esse impacto para os rendimentos mais baixos, mas são insuficientes”, argumenta António Schwalbach.

Ordem dos Advogados arrasa “pacto leonino” e “desleal”

Os advogados foram o primeiro grupo socioprofissional a reagir à proposta do Governo, através da sua ordem. Num comunicado divulgado na página da Ordem dos Advogados, os juristas queixam-se do “pacto leonino” que o Executivo propõe, classificam a medida de “desleal” e denunciam aquilo que dizem ser uma “redação pouco clara e uma técnica legislativa questionável”.

Trata-se de um verdadeiro pacto leonino que não tem em consideração o acordo previamente alcançado. Da perspetiva macroscópica, torna-se claro que o que o Governo propõe dar com uma mão (a redução das taxas de tributação progressivas), o Governo tira com a outra mão (o aumento do rendimento tributável dos empresários e profissionais liberais), sem qualquer discussão pública de uma medida que afetará uma percentagem elevada da sociedade portuguesa”, pode ler-se no comunicado.

Mais, continua a Ordem dos Advogados: “Na prática, com uma redação pouco clara e uma técnica legislativa questionável, o Governo propõe-se acabar com o regime simplificado sem, porém, querer assumir tal objetivo quando o mesmo resulta claro do texto da Proposta”.

Ao Observador, António Schwalbach, que é também representante da Ordem dos Advogados, adiantou que os representantes dos juristas vão tentar reunir com todos os grupos parlamentares no sentido de impedir que a norma, tal como está redigida, entre em vigor.

Alterações na isenção do IVA não avançam

A isenção de IVA para recibos verdes vai manter-se nos 10 mil euros ao contrário da intenção inicial do Governo de duplicar esse limite para 20 mil euros. A hipótese chegou a ser avançada como estando fechada e constava de uma versão de trabalho do Orçamento. Mas, afinal, não entra na versão final do documento que o ministro das Finanças vai fazer chegar ao Parlamento esta sexta-feira.

Numa versão de trabalho datada de 10 de outubro, a que o Observador teve acesso, a intenção do Governo era clara: “Elevar o limiar de volume de negócios até ao qual é aplicável o regime especial de isenção, com o limite de até 20.000€, eliminando o limiar constante do n.º 2 do artigo 53.º do Código do IVA”. Esta não era uma aplicação direta a partir do início de 2018, porque a ideia era a de dar uma autorização ao Governo que lhe permitiria legislar durante o ano sem ter de voltar ao Parlamento.

Se a alteração fosse para a frente, um trabalhador independente só passaria a estar obrigado a liquidar IVA a partir do momento em que a sua faturação ultrapassasse 20 mil euros anuais, em três anos civis consecutivos ou sempre que a sua faturação ultrapassasse, num ano, em 25% esse valor. No entanto, de acordo com a versão final aprovada em Conselho de Ministros, a que o Observador teve acesso, não existirá qualquer alteração nesta matéria. O limite de isenção de IVA para recibos verdes mantém-se, por isso, em 10 mil euros.

Isenção de IVA para recibos verdes até 20 mil euros não avança

Mínimo de existência alargado aos trabalhadores independentes

Ainda assim, há algumas boas notícias para os chamados recibos verdes. Tal como sublinhou Mário Centeno em entrevista à Antena 1, os trabalhadores independentes vão passar a gozar de um mínimo de existência.

O mínimo de existência, que é o valor mínimo do rendimento que os trabalhadores têm de ter depois de cobrados os impostos, passará a ser de 1,5 vezes o IAS em termos anuais, ou seja, 8.846 euros. Na prática, os trabalhadores — incluindo os independentes — vão ter pelo menos 632 euros de rendimento mensal livre de impostos.

Fisco fica impedido de penhorar recibos verdes de baixo valor

Outra boa notícia para os recibos verdes: a Autoridade Tributária vai deixar de poder penhorar a totalidade dos rendimentos dos trabalhadores independentes, ficando obrigada a garantir-lhes pelo menos um salário mínimo.

Na prática, esta medida traduz-se numa alteração ao Código do Processo Civil, que equivale os trabalhadores independentes aos trabalhadores por conta de outrem e aos pensionistas em processos de execução fiscal. O objetivo do Governo é garantir que também os chamados recibos verdes têm condições mínimas de subsistência sempre que sejam alvos de penhoras.

No entanto, os trabalhadores independentes que se encontrem nestas condições, não tendo naturalmente uma base fixa de remuneração, passam a estar obrigados a comunicar à Autoridade Tributária quanto dinheiro esperam receber em cada momento e todas as entidades que lhes pagam.

“O limite máximo e mínimo da impenhorabilidade é apurado globalmente, para cada mês, com base no total do rendimento mensal esperado do executado, sendo aqueles limites aplicados proporcionalmente aos rendimentos esperados de cada entidade devedora”, pode ler-se no articulado da proposta de lei.

Governo defende que Orçamento beneficia recibos verdes

Apesar das críticas, o Governo já veio defender as alterações introduzidas no Orçamento do Estado para os trabalhadores independentes. “Se há proposta que beneficia a categoria B [trabalhadores independentes, onde se inserem os chamados ‘recibos verdes’] é a proposta que o Governo apresenta à Assembleia da República”, afirmou António Mendonça Mendes, durante a conferência de imprensa de apresentação da proposta de Orçamento do Estado para 2018.

Esta segunda-feira, Mário Centeno também garantiu que os recibos verdes não vão pagar mais IRS no próximo ano. Em entrevista à Antena 1, o ministro das Finanças garantiu que as alterações introduzidas no Orçamento do Estado para 2018 beneficiam todos os trabalhadores, incluindo os recibos verdes.

Os trabalhadores independentes vão, tal como todos os outros trabalhadores em Portugal, pagar menos IRS. Vão pagar menos IRS porque as taxas dos escalões vão descer, porque a sobretaxa vai ser eliminada, vão pagar menos IRS porque o mínimo de subsistência é agora alargado aos recibos verdes. Esta é uma medida de um impacto enorme, principalmente para os trabalhadores que são falsos recibos verdes”, sustentou Centeno.

Quanto às críticas às alterações propostas para o regime simplificado de IRS, o ministro das Finanças argumentou que o único objetivo do Governo é “dar transparência ao sistema fiscal que abrange também os recibos verdes”. “Ninguém entende que um contribuinte possa ter acesso a uma dedução automática sem prestar contas, que era o que acontecia. É só essa alteração que está a ser feita. Os limites dessa dedução não foram alterados”, rematou Mário Centeno.