O jornalista e escritor Tom Wolfe, autor de “A Fogueira das Vaidades” e um dos expoentes do New Journalism, escreveu que até aos anos 60, os jornalistas americanos portaram-se em geral como “cavalheiros vitorianos” perante o poder, abstendo-se de dar notícias e de seguir histórias que seriam embaraçosas, nomeadamente para os presidentes dos EUA, porque gostavam de conviver com eles e ser próximos dos seus círculos pessoais. Isto nunca foi mais óbvio do que durante a administração de John F. Kennedy, que beneficiou de muita condescendência por parte dos jornais de referência. Há uma cena em “The Post”, de Steven Spielberg, que ilustra esta realidade. Ben Bradlee, o director do “The Washington Post” (Tom Hanks), compreende de súbito que a intimidade quase familiar que tinha com Kennedy lhe retirou distância, espírito crítico e objectividade em relação à Casa Branca.

[Veja o “trailer” de “The Post”]

Bradlee tem esta epifania deontológica tardia num momento decisivo da vida do seu jornal. Estamos em 1971. O “The New York Times” começou a divulgar os Pentagon Papers, um longo documento secreto que lhe foi passado clandestinamente, um estudo explosivo do envolvimento de várias administrações dos EUA no Vietname, entre 1945 e 1967. O presidente Richard Nixon conseguiu então, através de uma providência cautelar, que o “Times” o parasse de publicar, invocando razões de segurança nacional. Ora o “Post”, que tinha perdido a notícia para o seu congénere de Nova Iorque, conseguiu entretanto chegar também aos Pentagon Papers. Bradlee e Katahrine Graham (Meryl Streep), a proprietária e “publisher” do jornal tinham que decidir se desafiavam a Casa Branca, publicando-os por sua vez, em nome da liberdade de imprensa e do interesse dos cidadãos, ou se ficavam calados.

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[Veja a entrevista com Steven Spielberg]

Publicar significava encolerizar Nixon – aqui inevitável e exageradamente diabolizado por Spielberg, como apoiante fiel e público do Partido Democrata que o realizador é – e correr o risco de Bradlee e Graham serem presos, das acções da empresa a que esta presidia, e que incluía o periclitante “Post”, virem por aí abaixo, e de perder as licenças das suas lucrativas estações de televisão. Graham decidiu-se pela publicação, e o resto é história. Alguns anos mais tarde, o mesmo “The Washington Post” seria decisivo para a queda de Richard Nixon, na sequência da investigação do Caso Watergate. Tinha-se entrado numa nova era da comunicação social nos EUA, marcada por mais cepticismo e antagonismo em relação a Washington. (Se bem que, sobretudo da parte dos títulos liberais, esse cepticismo e antagonismo fossem sempre maiores e mais ferozes para com as administrações Republicanas do que as Democratas.)

[Veja a entrevista com Tom Hanks]

Steven Spielberg e os argumentistas de “The Post”, Liz Hannah e Josh Singer (este tinha já escrito um outro importante filme sobre jornalismo, “O Caso Spotlight”), usam aqui o formato clássico do “thriller” jornalístico, com todos os seus ingredientes – idealismo rascado dos jornalistas, pugna pela liberdade de expressão, desafio às autoridades em nome da verdade e do interesse do público, trabalho em contra-relógio para cumprir os prazos de fecho, “suspense” da investigação, etc. – para fazerem o elogio da liberdade de imprensa e da Primeira Emenda à Constituição dos EUA, que a protege. “The Post” é a ilustração dramático-documental de um preceito constitucional absolutamente fundamental na sociedade americana. E por extensão, em todas as sociedades abertas.

[Veja a entrevista com Meryl Streep]

A fita é ainda um retrato elogioso de Katharine Graham, que estava numa posição (herdada do marido, que se tinha suicidado) que praticamente nenhuma mulher havia até aí ocupado nos EUA, no meio da comunicação social como no empresarial, e que a levaria a ser a primeira líder feminina de uma das 500 maiores empresas da “Fortune”. Meryl Streep interpreta Graham não como uma qualquer pioneira militante do feminismo, mas tal e qual como ela era. Uma sofisticada, influente e reservada senhora da alta sociedade, típica do seu tempo e do seu meio, mãe de família extremosa e com um papel bastante passivo na condução da sua empresa. E que as circunstâncias levaram a sair para a ribalta e a tomar difíceis e decisivas decisões de liderança, revelando assim qualidades insuspeitadas.

[Veja os bastidores da rodagem]

Só que Spielberg não sabe quando deve parar, não percebe que já se fez entender. Por isso, não resiste a filmar uma cena em que Graham desce os degraus do edifício do Supremo Tribunal dos EUA envolta numa luz sobrenatural e rodeada por mulheres que a olham num êxtase de admiração. A mania da redundância, de sublinhar a grosso o que já foi sobejamente mostrado ou explicado, continua a ser uma das pechas de Steven Spielberg, sobretudo nestes filmes mais edificantes e que pretendem falar para o nosso tempo. Em “The Post”, são óbvios, embora pouco ou nada pertinentes, os paralelos feitos entre os EUA dos anos 70 sob Nixon e os EUA de hoje sobTrump. Mais não seja, porque os media, e em especial os grandes jornais como o “Times” e o “Post”, descredibilizaram-se por sua própria culpa, ao desligarem-se das preocupações e dos problemas da grande massa dos cidadãos, tornando-se veículos das ideias e modas de minorias elitistas e arrogantes, e do pronto-a-pensar politicamente correcto.

[Veja uma cena do filme]

Este forçar de semelhanças entre os anos 70 e o nosso tempo, quando as situações político-sociais são completamente diferentes nos EUA – basta recordar que nessa altura havia a guerra do Vietname – não é o único defeito de “The Post”. O filme puxa também a brasa à sardinha do “The Washington Post”, de tal forma que levantou protestos de várias pessoas ligadas ao “The New York Times”. James Goodale, na altura consultor editorial da equipa que trabalhava os documentos no “Times”, escreveu num artigo: “É como se Hollywood tivesse feito um filme sobre o papel triunfante do ‘The New York Times’ no Caso Watergate.” A isto junta-se o dogma liberal de que a guerra do Vietname era um caso perdido, quando Nixon, apesar das suas falhas de carácter e erros de política interna, estava a conseguir conter a situação militar e a criar condições para negociar a paz, extrair os EUA com dignidade do conflito e evitar uma vitória comunista e o consequente desastre geopolítico na região.

[Veja uma cena do filme]

O melhor de “The Post” — e além da interpretação de Meryl Streep, já que o Ben Bradlee de Tom Hanks não apaga a memória da de Jason Robards em “Os Homens do Presidente”, de Alan J. Pakula – está menos no seu posicionamento político e na mensagem cívica, do que na forma, no cinema em si. Steven Spielberg rodou-o entre duas produções de maior orçamento que tinha entre mãos, e tão a contra-relógio como os jornalistas do diário a passar ao crivo os documentos secretos e a escrever as peças antes da hora do fecho. Isto dá a “The Post” uma atmosfera e um sabor de filme de série B, com a sua narrativa pão pão, queijo queijo, e o prego a fundo cinematográfico a transmitir toda a urgência, tensão e emoção do histórico momento jornalístico.

[Veja a reportagem do ’60 Minutes’ de 1974 sobre o caso]

E há ainda, acima de tudo, a recriação minuciosa, cuidadosíssima, realista até mais não poder, do funcionamento de um jornal no tempo das máquinas de escrever e da impressão a chumbo no próprio edifício (a cena em que o prédio do “Post” começa a vibrar levemente quando o jornal vai para a máquina, é emocionante), bem como o hino ao trabalho de equipa num momento de incomensurável importância editorial, com mobilização geral da redacção, do director aos estagiários, muitos telefonemas, muito pé na rua, muita gritaria e confusão e os olhos sempre postos no relógio. Spielberg assenta praça na casa de Bradlee, onde está reunido o grupo que escrutina os documentos e elabora o artigo, e quem se aproveita do frenesim dos jornalistas é a filha pequena daquele, que faz um dinheirão a vender-lhes limonada enquanto a mãe serve sandes e esparguete. A pressão do fecho dá uma fome e uma sede danadas, e nisso “The Post” também acerta em cheio.