Um em cada quatro medicamentos recomendados para vários tipos de doenças inibe o crescimento de pelo menos uma bactéria dos intestinos. A avaliação do efeito na flora intestinal de cerca de mil medicamentos foi publicada esta segunda-feira na revista científica Nature.

Já se sabia que os antibióticos, enquanto medicamentos criados para matar bactérias, tinham um impacto negativo no microbioma do intestino — ou não fosse este maioritariamente constituído por bactérias. Também já se suspeitava que outros medicamentos podiam provocar modificações neste microbioma. “Muitos destes medicamentos, por inibirem os micróbios dos intestinos, desencadeiam efeitos secundários semelhantes aos dos antibióticos, incluindo problemas gastrointestinais e infeções com fungos (como aliás já é referido nas bulas desses medicamentos”, disse ao Observador Nassos Typas, investigador no EMBL. O que não se conhecia era extensão do problema.

A equipa liderada por investigadores do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL, na sigla em inglês) conseguiu, por um lado, demonstrar que não são apenas os medicamentos contra parasitas que provocam alterações na flora intestinal, mas que há medicamentos em todas as outras classes capazes de o fazer. Por outro lado, demonstrou que 250 medicamentos em 923 inibiam o crescimento de pelo menos uma bactéria, das 40 selecionadas como mais comuns nos intestinos humanos.

Este trabalho foi feito em laboratório testando cada medicamento em cada bactéria isoladamente. Falta saber que efeito terá o medicamento num intestino vivo, quando as bactérias não vivem isoladas, mas em comunidade. Por agora, os investigadores identificaram as seis classes de medicamentos que apresentaram maior impacto no microbioma: medicamentos para a hipertensão, contra o cancro, para o estômago, antipsicóticos, anti-histamínicos e contraceptivos hormonais.

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E que impactos podem ter estes medicamentos na flora intestinal? “Neste momento ainda não sabemos”, admitiu Nassos Typas, líder do grupo Dissecando o Estilo de Vida Bacteriano e as Interações Entre Espécies com Abordagens dos Sistemas. “Certamente que vai variar consoante o tipo de micróbios que cada pessoa tiver e aqueles que forem alvo do medicamento, mas também depende da saúde humana e da fisiologia.”

Esta mudança da composição das bactérias do intestino contribui para os efeitos secundários dos medicamentos, mas também podem fazer parte da ação benéfica desse medicamento”, disse em comunicado de imprensa Peer Bork, líder do grupo de Decifrando a Função e Evolução dos Sistemas Biológicos.

Ou seja, o facto de os medicamentos serem capazes de alterar as comunidades de bactérias no intestino pode fazer com que potenciem o seu efeito no problema que pretendem tratar. Isto significa que há muito trabalho a fazer no que diz respeito ao impacto que cada medicamento tem no microbioma intestinal, porque isto pode trazer um aumento do conhecimento da ação do medicamento e da sua eficácia, refere em comunicado de imprensa Kiran Patil, líder do grupo de Arquitetura e Regulação das Redes Metabólicas.

E estes impactos são revertidos uma vez que se deixe de tomar esse medicamento? “Boa pergunta. Precisamos de testar”, disse Nassos Typas. “Mas é preciso lembrar que alguns destes medicamentos são tomados toda a vida.” Além de não conhecer o impacto a curto prazo ou se este pode ser revertido, os investigadores também não sabem quais os impactos a longo prazo. Mas sabem que os microbiomas menos diversos têm sido associados a determinadas doenças, como lembrou o investigador.

Estudar a interação dos medicamentos (não-antibióticos) com as bactérias do intestino também se mostra importante para a medicina personalizada. Como cada pessoa pode ter uma comunidade de bactérias diferente no intestino, a forma de ação do medicamento na presença ou ausência de determinadas bactérias também pode ser diferente.

Mas se esta alteração do microbioma pode ter um efeito benéfico ou mostrar algum potencial para uma medicina personalizada mais eficaz, também tem um lado menos positivo relacionado com o desenvolvimento de bactérias resistentes a antibióticos. “Isto tem de ser avaliado com cuidado”, disse Nassos Typas. “Identificámos o risco, mas o grau em que ocorre nos doentes ainda tem de ser testado.”

Existe o risco de uma bactéria que desenvolva resistência a um medicamento que não seja antibiótico, também desenvolva resistência a um antibiótico. Ou que uma bactéria comensal (que vive em simbiose no nosso intestino) que ganhe resistência passe esse gene a uma bactéria patogénica.

Quanto mais resistente aos antibióticos for a nossa flora intestinal comensal, maior será a probabilidade de que esta característica passe para os patogénios”, alertou Nassos Typas.

Mas ter uma bactéria resistente aos antibióticos ou aos outros medicamentos não significa que todas as bactérias o sejam. Pode acontecer que uma bactéria resistente a um antibiótico seja mais sensível a outro. Conhecer estas situações é importante para combater bactérias resistentes. Tal como é importante conhecer que medicamentos não-antibióticos podem combater determinadas bactérias.

“Se tiverem uma ação forte contra um patogénio específico, é possível usá-los tal como são”, disse Nassos Typas, referindo-se aos medicamentos que ainda não são classificados de antibióticos. “Alternativamente, o suporte principal pode servir de base ao desenvolvimentos de novos fármacos com uma atividade antibacteriana mais forte (e, talvez, sem outros efeitos secundários no hospedeiro).”