Dizer que a Square Enix ajudou a criar e definir o que são os JRPGs (Japanese Role-Playing Games) é um eufemismo, ora não fosse esta gigante corporativo japonesa o resultado da fusão de duas empresas históricas, a Square e a Enix. Nos anos 1980 foram precisamente essas duas empresas concorrentes que viriam a pegar nas ideias e no crescente interesse ocidental em torno dos RPGs e cimentado as fundações do género no Japão. Por um lado, a Enix com o seu Dragon Quest, e por outro a Square com Final Fantasy (que é ainda hoje uma das séries de maior sucesso comercial da História dos videojogos) estabeleceram as características dos JRPGs que se mantêm até hoje.

É consensual afirmar que a era dourada do género acabou por ser na geração de consolas de 16 bits, em especial o catálogo que a (então conhecida por) Squaresoft criou para a Super Nintendo, e que contém alguns dos mais aclamados JRPGs de sempre.

Não se pode dizer que o género tenha mudado muito, mas o mercado sim, alterou-se desde o tempo em que os JRPGs invadiram o ocidente, seguindo o sucesso massivo de Final Fantasy VII (de 1997), e pouco depois de Pokémon (de 1996 no Japão, e 1998 nos EUA). Estes jogos de fantasia (e alguns de ficção científica) por turnos viriam a abandonar a pixel art e a bidimensionaolidade para abraçar a passagem ao 3D do referido Final Fantasy VII e de tantos outros jogos do género que chegaram à PlayStation 1 na segunda metade da década de 1990.

Nos últimos anos, a Square Enix tem tentado reencontrar esse sucesso massivo que teve no apogeu dos JRPGs, e um dos caminhos escolhidos pelos seus criativos para o alcançar foi o da nostalgia. Se a geração de 16 bits foi aquele onde o seu impacto no mercado global foi mais notório, então o caminho poderia passar por apelar à memória dos jogadores que passados quase trinta anos ainda pensam naqueles jogos como verdadeiros marcos.

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Depois de duas décadas em que eu me senti distante das criações da Square, que nunca conseguiram reproduzir a qualidade das suas produções da década de 1990, seria há poucos anos num destes “testes” retro feitos para a 3DS que eu viria a “reencontrar” o filão de JRPGs de qualidade desenvolvidos pela gigante nipónica. Bravely Default (e a sua sequela Bravely Second) são jogos exclusivos da consola portátil da Nintendo e que apelavam à jogabilidade, ritmo e abordagem dos jogos de 16 bits, num salutar regresso às origens que resultou num grande sucesso comercial e crítico. Depois das tentativas falhadas este ano com Lost Sphear e o remake do clássico Secret of Mana, era fácil perceber que estes dois títulos eram quase preparatórios para a grande aposta da Square neste círculo nostálgico: Octopath Traveler.

Desde a sua revelação num Nintendo Direct em Janeiro de 2017 que a sua direção artística nos conquistou de imediato. E não era para menos: a situação artística de compromisso entre o passado e o presente que Octopath Traveler trouxe é uma das ideias mais interessantes que já vimos em JRPGs. Por um lado um regresso à pixel art e à animação de sprites da geração de 16 bits construída espacialmente num ambiente tridimensional. Por outro a tecnologia e o processamento gráfico de hoje que compilam a envolvência artística com excelentes efeitos luminosos e uma ótima utilização de profundidade de campo.

Octopath Traveler faz-nos regressar a outros tempos dos JRPGs, onde os personagens tinham classes associadas, mas fá-lo de forma diferente. Não fosse o próprio título anunciar isso e aqui temos oito caminhos distintos a percorrer, cada um correspondente aos oito protagonistas do jogo. Quando começamos a jogar é-nos pedido que escolhamos qual dos oito será o nosso personagem principal, e é a partir do seu prólogo que o jogo tem início. Isto não significa que ficamos impedidos de conhecer os restantes sete, muito pelo contrário. Findo o prólogo do jogo o mundo de Octopath Traveler abre-se e temos a indicação no mapa onde está cada um dos restantes sete protagonistas para que os encontremos, os recrutemos para a nossa equipa, e, se quisermos, que joguemos também os seus prólogos para conhecer as suas motivações.

Sendo um JRPG, o foco na narrativa é bastante grande, mas no caso de Octopath Traveler houve surpresas de tom. Apesar do argumento estar cheio de clichés e de nenhuma das oito linhas narrativas paralelas nos contarem histórias verdadeiramente novas, é no tom mais pesado das mesmas que surge a diferença para muitos dos títulos produzidos pela Square Enix. Sem qualquer indício explícito é possível depreender que a dançarina que conhecemos vive num bar de alterne, e ela e as suas “colegas” falam abertamente da violência a que são sujeitas se o Mestre não faturar o esperado. Ou o apotecário que tem de visitar no cemitério todos os doentes que não conseguiu salvar e cuja culpa ainda o afeta. Tudo isto sem nunca ser direto ou abertamente negro: os momentos mais pesados são leitura de sub-texto.

Não somos obrigados a recrutar todos os personagens, nem temos uma ordem fixa para o conseguir, mas fazê-lo não só torna o jogo um pouco mais acessível como nos mostra tudo o que está escondido com todo o elenco. Porém, a nossa equipa só pode ter quatro membros, o que significa que os restantes ficarão na taberna a descansar, sem receber qualquer experiência de combate.

Apesar de ter loops repetitivos como em todos os JRPGs, as batalhas são um dos elementos mais interessantes deste Octopath Traveler. Os seus combates por turnos são muito mais do que eram há 30 anos em que nos limitávamos a escolher uma ação e esperávamos que ela fosse aplicada. Aqui há um sistema de forças e fraquezas que são uma espécie de dança com os adversários.

Estes têm perto do seu nome um escudo com um dígito que representa o número de golpes com uma arma ao qual sejam vulneráveis que necessitamos de utilizar para os deixar atordoados, desprotegidos, e darmos mais dano. Mas como as suas fraquezas estão escondidas temos de ir por tentativa-erro alternando as armas e os personagens até encontrarmos aquelas que os deixem desprotegidos. À semelhança de Bravely Default, há também um sistema de ações e multiplicadores de bónus que utilizamos à nossa escolha e que são o segredo para a nossa eficácia em batalha.

Octopath Traveler é um dos grandes jogos da Nintendo Switch deste ano, e um JRPG tão bom que para os fãs do género é daqueles títulos que justificam a compra da consola. Um verdadeiro regresso aos tempos áureos dos JRPGs mas pensado para os dias de hoje. Uma pequena maravilha que só não figurará lado a lado com os melhores títulos da era Super Nintendo pela sua qualidade narrativa, que apesar de não ser fraca per se, não está no mesmo patamar que o seu game design. Este título lançado hoje em exclusivo para a consola híbrida da Nintendo é um dos jogos obrigatórios da consola e um dos melhores JRPGs da década, mas também de um Verão que tem sido ameno em clima mas também em grandes lançamentos de videojogos.

Ricardo Correia, Rubber Chicken