Depois de uma paragem para banhos, o primeiro-ministro e líder do PS foi o primeiro dos líderes partidários a inaugurar as hostilidades. Num discurso de cerca de 40 minutos, António Costa desfez o “tabu” da maioria absoluta; avisou os parceiros da esquerda, com quem ainda tem pelo menos mais um Orçamento para aprovar, de que ano eleitoral não pode ser sinónimo de perda de rigor orçamental, sob pena de a esquerda ser prejudicada nas urnas e, consequentemente, os feitos até agora conquistamos caírem por terra; puxou dos galões para recordar as conquistas do governo nos últimos “mil dias”; e à oposição não dedicou mais do que uma metáfora sobre “lágrimas de crocodilo”.

Eis um apanhado do que António Costa disse aos socialistas na Festa de Verão do PS, em Caminha, e o que quis dizer, sobretudo para Bloco de Esquerda, PCP e Verdes ouvirem.

Mil dias, mil maravilhas. O país está melhor e os portugueses também

“Se olharmos para trás ao longo destes mil dias, podemos fazer uma avaliação que não se esgota só nas estatísticas: podemos dizer que o ano passado foi o ano em que mais crescemos na economia desde que aderimos euro e foi o primeiro ano em que Portugal voltou a crescer mais do que a média europeia, desde que aderimos ao euro”.

António Costa pintou todo o seu discurso com elogios rasgados às políticas do governo socialista, suportadas pelos partidos da esquerda no Parlamento. Começou logo por invocar uma efeméride de que ninguém se tinha sequer lembrado: parece que faz hoje precisamente mil dias desde a formação do atual governo. Mil dias, mil maravilhas:

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  • Nestes mil dias foram criados “315 mil novos postos de trabalho” não precário;
  • Nestes mil dias houve mais 70 mil pessoas, “que estavam desencorajadas”, a voltarem à vida ativa, tendo já emprego ou tendo voltado a inscrever-se no centro de emprego;
  • O salário mínimo nacional aumentou “15% desde 2015 e para o ano vai continuar a aumentar”;
  • O rendimento das famílias aumentou “4,7%” nos últimos três anos;
  • Nos últimos três anos “80 mil portugueses” saíram do limiar da pobreza;
  • O investimento privado no ano passado foi “o maior dos últimos 19 anos”;
  • No ano passado “tivemos o défice mais baixo de toda a historia democrática”.

E por aí fora. António Costa até admitiu que “nem tudo são rosas”, mas mesmo quando entrou nos setores mais específicos, e também mais contestados, como a saúde e a educação, só teve coisas boas para enaltecer. “É evidente que há problemas no SNS e temos de trabalhar para melhorar a qualidade da escola pública, mas imaginem que tínhamos dado continuidade às políticas da direita: como estaríamos hoje na saúde, no hospitais na escola pública?”, atirou, pedindo à audiência que fizesse um exercício de memória. É que, se a “despesa pública com saúde foi cortada em 1% do PIB com o governo PSD/CDS”, com o atual governo “a despesa pública com saúde aumentou em 700 milhões de euros”. O mesmo para a educação: se durante os anos de governação PSD/CDS os cortes foram de “18%”, nos últimos três anos “o aumento da despesa pública com educação foi de 10%.

Percentagens abstratas que Costa traduz em ganhos concretos: menos alunos por turma, manuais escolares gratuitos, mais 7 mil professores vinculados; mais 7.900 profissionais de saúde no SNS do que em 2015;uma redução para metade do número de portugueses sem médico de família, mais 19 mil cirurgias do que antes, assim como mais 300 mil consultas. Ou seja, ao contrário do que dizia Luís Montenegro em 2014 — “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor” –, agora António Costa pode dizer que não é só o país que está melhor, mas a vida das pessoas também.

As “lágrimas de crocodilo” do CDS (mais claro) e do PSD (mais confuso) que, se estivessem no governo, estavam a privatizar serviços

“É bom que ninguém se iluda quando ouvimos os dirigentes do PSD e do CDS a chorarem lágrimas de crocodilo pela qualidade dos serviços públicos. Sabemos bem o que eles fizeram e sabemos o que queriam fazer: privatizar. É isso que eles sonham fazer com os serviços públicos”.

O secretário-geral do PS não dedicou uma grande parte do seu discurso a atacar a oposição. Achou, porventura, que a melhor arma eleitoral são os trunfos económicos positivos, e não o tiro ao alvo aos adversários. Daí que apenas se tenha referido ao PSD e ao CDS para criticar as “lágrimas de crocodilo” que deixam escapar, quando denunciam as falhas nos serviços públicos — como é o caso das falhas nos comboios, que têm marcado o debate na última semana.

Aqui, Costa aproveita para dar uma alfinetada maior ao PSD do que ao CDS, apelidando os centristas de maior clareza nas intenções, e os sociais-democratas de maior “confusão”. “O CDS foi claro quando veio aqui a Viana dizer que a solução para o serviço de comboios era a concessão a privados das linhas da CP, já o PSD é mais confuso e tem um documento — que não sabe se vai ou não discutir — sobre o SNS, onde diz que quer acabar com o serviço nacional de saúde e criar um sistema concorrencial entre público e privado, que apenas significa que o SNS é para quem não tem dinheiro, e os serviços de saúde privados para quem tem”, disse, concluindo que, de uma maneira ou de outra, tanto o PSD como o CDS acham que a melhor maneira de resolver os problemas dos serviços públicos é privatizando-os.

PCP, BE e PEV que nem pensem em manobras eleitorais. É preciso rigor e estabilidade para não estragar o que já foi conseguido

“Um voto ganho pode ser um país que se perde. Ninguém nos perdoaria se fosse preciso cortar o que já conseguimos repor, aumentar o que já baixamos. Não podemos estragar o que já conseguimos. E para não estragar, não podemos pôr em causa a estabilidade política que esta solução de parceria tem permitido, nem ter uma gestão orçamental irresponsável que, fazendo derrapar o défice e aumentar a dívida, teria com consequência desfazer o que já conseguimos”.

Foi aqui que Costa deu mais recados aos seus parceiros de governação. Mostrando-se ciente de que o ano político que agora começa é ano de eleições, o secretário-geral do PS quis alertar o PCP, BE e PEV para o perigo de eventuais sobressaltos na geringonça devido a eleitoralismo ou calculismo eleitoral poderem vir a traduzir-se num cartão vermelho à esquerda na noite eleitoral. “Um voto que se ganha pode ser um país que se perde”, disse a meio do discurso, garantindo que ele próprio não ia embarcar em eleitoralismos.

Para Costa, a única forma de a esquerda chegar com boa imagem às eleições é mantendo o caminho até aqui seguido: cumprindo o que prometeu e respeitando compromissos, tanto internos, como lá fora na Europa. Ou seja, mantendo a estabilidade política da “geringonça” e mantendo o rigor orçamental.

Caso contrário, alertou, se entrarem em eleitoralismos e o comboio sair dos carris, vai-se “estragar aquilo que já foi conseguido”. E “ninguém nos perdoaria” (leia-se, os portugueses não lhes dariam um voto de confiança nas urnas) se isso acontecesse. “Ninguém nos perdoaria se fosse preciso cortar o que já conseguimos repor, ou aumentar o que já conseguimos baixar”, disse, fazendo lembrar os tempos da crise que obrigaram a medidas duras de austeridade. O segredo é, segundo Costa, não pôr em causa a estabilidade política da geringonça, nem enveredar por caminhos de irresponsabilidade orçamental. Fica o aviso.

Além de que ainda há um Orçamento (bem recheado) para aprovar…

“Não podemos desistir de continuar a aumentar a riqueza produzida no país, porque se queremos continuar a traduzir os números em menor carga fiscal e em mais investimento, temos de aumentar o bolo que estamos a construir. É para aí que tem de ir o esforço maior do nosso próximo Orçamento”.

No curto prazo, Costa lembrou a importância de o próximo Orçamento do Estado vir a ser aprovado porque, lá está, é “fundamental não estragar o que já produzimos”. O caminho é para continuar, reforçou várias vezes. E foi aí que levantou a ponta do véu sobre algumas medidas previstas para o Orçamento do Estado de 2019, fugindo contudo a um dos temas mais polémicos entre os parceiros de esquerda: a contagem ou não do tempo de serviço dos professores para efeitos de progressão na carreira.

O primeiro-ministro preferiu pôr a tónica noutras prioridades: na Cultura, que terá “o maior orçamento de sempre”, na Ciência, que terá “um grande aumento orçamental” (e onde se vai criar cinco mil lugares de emprego científico, entre setor público e privado), e na Educação, onde se vai “continuar a investir”. É nos eixos do conhecimento e inovação que o primeiro-ministro quer apostar, mas sem esquecer a valorização do interior (com benefícios em sede de IRC para as empresas do interior em função do número de postos de trabalho criados), e as medidas de incentivo à fixação de população — nomeadamente nos incentivos ao regresso do emigrantes, que vão passar a beneficiar de um desconto de 50% no IRS.

O mérito não é só meu, é também dos portugueses que brilham lá fora (como Centeno e Guterres)

“Recuperámos a confiança porque recuperámos o prestígio internacional. Nem tudo se deve ao governo, mas hoje Portugal tem de novo prestígio em todo o mundo”.

Num apontamento leve, António Costa fez questão de não passar ao lado de uma das polémicas da última semana, que envolveu o seu ministro das Finanças, Mário Centeno, na qualidade de presidente do Eurogrupo (a elogiar a saída da Grécia do programa de assistência financeira da troika). Enquanto enumerava os feitos do atual governo, Costa fez uma graçola ao dizer que nem tudo era mérito do governo, mas também era mérito de portugueses como Fernando Pimenta, o canoísta que se sagrou este sábado campeão do mundo em K1 (1000 metros).

A ideia era sublinhar que se antes Portugal era um país esquecido e sem confiança, agora recuperou o seu “prestígio internacional” e está nas bocas do mundo. Além do canoísta, os nomes invocados por Costa para dar nota deste prestígio internacional foram, pois, Mário Centeno, na qualidade de presidente do Eurogrupo, assim como António Guterres, secretário-geral da ONU, ou António Vitorino, enquanto diretor-geral da Organização Internacional das Migrações. “Sim, hoje Portugal tem de novo prestígio em todo o mundo”, disse, voltando ao país das mil maravilhas.

Uma questão de força, não de maioria absoluta. É preciso “dar mais força” ao PS porque é imprescindível a um governo de esquerda

“Como não gosto de tabus, quero deixar muito claro uma coisa: só temos uma meta nestas eleições, que é ganhar as europeias, ganhar as legislativas e, pela primeira vez, ganhar as eleições na região autónoma da Madeira”.

Tudo para dizer: votem no PS. Porquê no PS e não no BE ou no PCP? Numa tentativa de apelar ao voto útil, Costa tentou explorar a ideia de que o PS é “imprescindível” para qualquer governo de esquerda progressista em Portugal, enquanto os parceiros da esquerda são apenas “essenciais”. “É preciso não haver ilusões, não há em Portugal nenhum Governo progressista sem o PS e sem que o PS tenha força para formar esse Governo”, disse. Ou seja, sem o PS, Bloco de Esquerda e PCP não são ninguém, enquanto o contrário já não é assim.

“É absolutamente essencial dar mais força ao PS”. Foi nestes termos que Costa apelou sempre ao voto, tanto para ganhar as europeias como as legislativas e as regionais da Madeira. Limitou-se a pedir mais força para o partido, fugindo sempre ao pedido de “maioria absoluta”, o tabu dos grandes partidos em época de eleições.

Um tabu que Costa quis logo desfazer, a um ano das eleições. “Não gosto de tabus e por isso deixo claro que só temos uma meta: ganhar nas legislativas, ganhar nas europeias, e pela primeira vez ganhar na Madeira”, disse.

Je ne suis pas Sócrates. Sou rigoroso nas contas e não vou deixar o país falido

“Termos uma boa gestão orçamental não é ser de esquerda ou de direita, é governar bem. Orgulho-me de ter governado bem uma câmara que herdei falida e entreguei nas mãos de Fernando Medina em boas condições de governabilidade. No dia em que deixar de exercer as funções que exerço, não deixarei o país pior do que encontrei, deixarei muito melhor do que encontrei”.

Foi uma passagem curta e rápida do discurso, mas fica a ideia. Numa altura em que Rui Rio se quer fazer valer das suas competências de “contas à moda do Porto”, também António Costa quer associar-se a uma imagem de bom gestor, bem diferente do estereótipo aplicado aos socialistas despesistas.

A referência apareceu duas vezes. Primeiro quando disse que “ter uma boa gestão orçamental não é ser de esquerda ou direita, é governar bem”. E, depois, quando garantiu que, tal como fez na câmara de Lisboa, quando deixar os comandos do país não vai passar ao próximo um país falido (como fez Sócrates), mas sim um país num estado bem melhor do que aquele que herdou.