As crianças têm os horários tão preenchidos que os pediatras devem, em consulta, prescrever mais tempo para brincar. Esta é a recomendação que consta no mais recente relatório da Academia Americana de Pediatria. O relatório com recomendações para os pediatras norte-americanos esclarece que “brincar não é uma coisa frívola”, uma vez que investigações recentes continuam a mostrar que brincar ajuda os mais novos a desenvolver um conjunto vasto de capacidades — potencia a linguagem e as capacidades de negociar com os outros e de lidar com o stress. E estes são apenas alguns exemplos.

Brincar não é uma coisa frívola: melhora a estrutura e a função do cérebro e promove funções executivas (ou seja, o processo de aprendizagem), o que nos permite perseguir objetivos e ignorar distrações”, lê-se no relatório.

Escolas e pais demasiado preocupados com o currículo académico das crianças são os principais visados neste relatório, no qual consta a recomendação para que os pediatras tentem inverter a tendência. O problema descrito é atribuído às pressões da vida em sociedade e não às “más intenções” dos pais. Os autores do documento dão especial destaque à noção de que brincar é fundamental para promover crianças mais saudáveis. O ato de brincar com pais e colegas é encarado como uma oportunidade para “promover capacidades socioemocionais, cognitivas, linguísticas e de autoregulação.

As recentes mudanças culturais têm “prejudicado” as oportunidades de brincadeira das crianças, defendem os autores, que apresentam os seguintes números (sempre referentes à realidade norte-americana): de 1981 para 1997, o tempo de recreio das crianças diminuiu em 25%; crianças dos 3 aos 11 anos perderam 12 horas por semana de tempo livre e 30% dos jardins de infância não têm recreio. 

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Currículos equilibrados e tempo para brincadeiras de qualidade são o objetivo último das recomendações da Academia Americana de Pediatria, que encara ainda o ato de brincar como algo “fundamentalmente importante” para aprender as habilidades necessárias ao século XIX: desde aprender a resolver problemas a saber colaborar com os outros e a ser criativo.

A importância de brincar

Já em 2015, o Observador escrevia, citando o psicólogo Paulo Sargento, que as brincadeiras devem seguir três etapas evolutivas: as atividades que geram ação (quando um bebé atira um brinquedo ao chão está a ter uma primeira noção da lei da gravidade), as simbólicas (pegar numa vassoura e transformá-la num cavalo é um exercício de imaginação) e as que exigem regras (os jogos de computador e os de tabuleiro ajudam a perceber que a vida rege-se por um conjunto de normas).

Ao Observador, Núria Madureira, pediatra no Hospital Pediátrico de Coimbra, explica que brincar, embora um ato desvalorizado, é fundamental em todas as idades e contribui para o desenvolvimento de quatro grandes áreas: motricidade grossa; motricidade fina e visão; audição e linguagem; e autonomia e interação social. Se jogar à bola permite o desenvolvimento da motricidade grossa (como saltar e andar), ler ou ouvir uma história é essencial para a audição e para a linguagem. Já brincar ao faz de conta tem um peso significativo no que à interação social diz respeito.

Falta tempo e espaço para brincar

Para os pediatras Gonçalo Cordeiro Ferreira e Núria Madureira, recomendar mais tempo para brincar é uma coisa consensual, tanto que já o fazem em consultório.

“Quando uma criança brinca está a aprender a construir pontes, quer brincando sozinha, através da imaginação, ou acompanhada, com regras preestabelecidas.” O problema, salienta Gonçalo Cordeiro Ferreira, com mais de 30 anos de experiência, é não existir tempo nem espaço para brincar. Ao Observador, o pediatra aponta o dedo a uma “sociedade normativa” e fala de um “espírito competitivo” que já existe na pré-primária, onde é exigido que as crianças “cheguem aos mesmos pontos na mesma altura” — isto é, não se admite que existam diferentes níveis maturidade. “Existe um regime escolar rigoroso na primária.”

“Com estas preocupações pseudo-académicas, não há tempo para brincadeiras. Os pais têm uma estrutura muito normativa do que a criança deve fazer”, continua o pediatra. As atividades extra-curriculares, diz, dividem cada vez mais o tempo dos mais novos. Núria Madureira concorda, ao dizer que as crianças não brincam o suficiente, também por culpa daquilo que lhes é exigido, nas escolas e em casa, com uma geração de pais muito preocupada em assegurar ou preparar o futuro dos filhos.

Acho que, atualmente, a nossa sociedade incute uma pressão nas crianças que é claramente exagerada. Os meninos têm todos de ser os melhores em tudo. Isso não é real. Não somos bons em tudo. Penso que é difícil para os pais aceitar as fragilidades dos filhos. Por vezes, os pais projetam nas crianças aquilo que gostariam de ter sido ou aquilo que não tiveram oportunidade de fazer”, acrescenta a pediatra Núria Madureira.

Outro ponto, que também é referido no relatório de políticas em causa, é o facto de os pais recearem que os filhos brinquem demais. “A questão não é brincar demais, é deixar de fazer determinadas atividades. Acho que o problema aí é perceber porque é que as crianças não fazem [ou não querem fazer] os trabalhos de casa. É uma questão de motivação da escola”, continua Madureira.

A falta de espaço, por sua vez, é uma realidade que já se verifica em jardins de infância, que não estão dotados de espaços para o recreio, salienta Gonçalo Cordeiro Ferreira. “As crianças não têm espaço para brincar ao ar livre.” Mas nem tudo é negativo, com o pediatra a trazer bons exemplos para a conversa, referindo-se às escolas que, no verão, levam as crianças à praia. O problema, aponta, é a frequência com que isto acontece. “Devia ser obrigatório as crianças terem tempos livres fora da escola.”

Como brincar?

Cada vez se brinca menos e cada vez mais se brinca de forma diferente. Núria Madureira acredita que, tendo em conta a atual oferta de brinquedos, existe um maior cuidado do ponto de vista pedagógico, embora haja outras distrações. Os telemóveis e os vídeos de YouTube, por exemplo, podem constituir um “flagelo” caso as atividades a eles associadas não sejam transformadas em algo produtivo e não sejam vigiadas por adultos. Mas mais importante do que os brinquedos é a companhia dos pais: “Costumo falar sobre isto nas consultas de pediatria geral. O tempo pode ser pouco, mas a qualidade não. Refiro-me à regra dos 15 minutos. Os pais devem despender 15 minutos de atenção exclusiva a cada um dos filhos, uma vez por dia. Nesse período de tempo devem fazer o que as crianças quiserem fazer”.

Gonçalo Cordeiro Ferreira deixa ainda um aviso: para o pediatra, brincar não é sinónimo de jogar jogos eletrónicos ou ficar à frente de iPads, situações “passivas”, nas quais não existe o elemento surpresa ou o elemento de construção.