Em 1973, o antropólogo mexicano Santiago Genovés resolveu levar a cabo uma experiência que tinha em vista a resolução dos conflitos que se passavam no seu tempo. “The Raft”, que passa esta sexta (22h00, Sala Manoel de Oliveira, São Jorge) e sábado (18h45, Sala 3, São Jorge) no DocLisboa, é um documentário de Marcus Lindeen que mostra como a “The Sex Raft” / “Jangada do Sexo” (nome pela qual ficou conhecida nos media) se desenvolveu. Aspirações, ambições e falhanços numa jangada chamada Acali, que atravessou o Oceano Atlântico, de Las Palmas até ao México, com uma tripulação composta por cinco homens e seis mulheres, de diferentes nacionalidades, religiões e etnias.

“The Raft”, que tem acumulado prémios em festivais, como o CPH:DOX ou o Athens International Film Festival, é um inteligente documentário sobre a visão de Santiago Genovés de um mundo perfeito e de como a sua experiência é infetada pelos próprios vícios do investigador. Marcus Lindeen retira todo o lado popularucho da experiência do seu filme, o fator sexo é rapidamente eliminado nos primeiros minutos (porque não houve assim tanto sexo na jangada e isso é confirmado pelos próprios intervenientes), e mostra-a a partir das expectativas de Santiago Genovés, que absorveu após a investigação do material que deixou sobre a experiência da Acali.

A experiência teve algumas condicionantes impostas pelo seu criador. Santiago queria que os papéis da sociedade fossem invertidos, que fossem as mulheres a ter o poder – a capitã da Acali era uma mulher sueca, Maria – e que os homens estivessem mais submissos às ordens. Ao longo dos três meses que a experiência decorreria, a ideia era testar uma sociedade neste modelo, longe da civilização terrena, no mar.

Ao mesmo tempo, estudar situações de conflito. Perceber o que ia na cabeça de cada um dos participantes. Durante a experiência, Genovés pediu-lhes para responder a questionários sobre o que estavam a achar da experiência e, também, sobre os outros participantes. Eram uma espécie de confessionário à Big Brother, que Santiago usava para instigar conflito e manipular situações que pudessem servir as conclusões que queria tirar.

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Estivemos à conversa com o realizador Marcus Lindeen para tentar perceber o que ia na cabeça deste antropólogo mexicano e o que o atraiu nesta experiência, mas também para saber como foi falar no presente com as pessoas que fizeram parte de uma das experiências mais estranhas do século XX.

[o trailer de “The Raft”:]

Quando ouviu falar sobre a experiência de Santiago Genovés e da sua Acali?
Andava à procura de um grupo de pessoas mais velho que tinha feito algo radical na sua juventude. Isso era a ideia geral, andava à procura de situações para reunir pessoas, como grupos de teatro, comunas estranhas que tenham existido em diferentes partes do mundo. Li um livro em alemão, com as cem experiências mais estranhas de sempre, e uma delas era a experiência no Acoli, que lá era tratada como “a jangada do sexo”, e fiquei muito curioso com isso. Fiquei espantado com a história e surpreendido por nunca ter ouvido falar dela antes, principalmente porque a capitã era uma mulher sueca. Pensei que era o grupo perfeito para reunir, porque o que fizeram na altura foi tão espectacular e instigador do pensamento. De certa forma, era uma espécie de conto de fadas: tentar perceber como o comportamento humano, relações, violência, sexualidade funcionam a partir de um microcosmos do mundo, com diferentes religiões, nacionalidades e géneros, numa jangada. Soava-me a um mito grego mas que foi realidade. Parecia demasiado bom para ser verdade.

Parece que ele está muito concentrado em destruir a ideia de utopia que existia em algumas comunidades naquela altura, como as comunas: como se, com uma troca de papéis, a ideia de uma comunidade utópica não funcionasse. Também viu isso na investigação que fez em volta do trabalho dele?
Nunca li sobre isso, de que ele via a experiência como um projeto de utopia. Claro que ele tinha a ambição de perceber se era possível as pessoas viverem em paz, que encontrassem a solução. Mas a situação que ele queria criar era de fricção e ele estava à espera que fosse conflituosa e violenta, para que ele pudesse percebê-la. E que ao percebê-la encontrasse uma forma do mundo se livrar dela e criar paz no mundo. Penso que ele queria mais isso. Claro que ele era um intelectual que foi formado naquele tempo e nos 1960s e nos 1970s havia muito essas ideias de novas comunidades que desafiassem a ideia da família tradicional. A ideia da jangada estava muito próxima às ideias de então, creio que ele viu o potencial de criar esse tipo de desafio, mas longe da civilização: o que vai acontecer? Ir-se-á criar um novo tipo de família? Quem terá o poder? Haverá sexo? Confronto? Será que a vida no mar será diferente da vida na terra?

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Um dos momentos mais interessantes no seu filme é quando o Santiago decide arranjar o barco e mergulhar, não deixando uma mulher desempenhar esse papel. Esse momento é fascinante, porque ele trocou os papéis entre homens e mulheres, isso é parte da experiência, mas depois não lhes dá a liberdade para decidir e não os deixa fazer a coisa mais óbvia: deixar que seja um profissional a arranjar o barco.
É um momento simbólico de como ele destrói o seu próprio projeto. Porque ele tinha a ambição de criar uma situação feminista, o que aconteceria se as mulheres estivessem no poder e estivessem com os cargos importantes a bordo, como médico, navegador, mergulhador. E quando isso acontece, ele não aguenta que as mulheres estejam a fazer os seus trabalhos e estejam com o poder. Ele não se consegue controlar, ele tem que dominar. Essa cena mostra tudo de uma forma quase cómica, porque ele não sabe mergulhar. Uma das mulheres era uma mergulhadora profissional e sabia como o fazer: aliás, é ela que o faz no final, em menos de dois minutos. E ele quase que perde a vida, porque foi estúpido, porque não sabia fazê-lo e insistiu. E há alguma ironia na cena, porque quando ele vai para a água, é a sua barba grande, muito masculina, que possibilita que a água entre na sua máscara, quase afogando-o. Mostra as questões políticas de género e patriarcado. E ele mostra, dessa forma, a estupidez do patriarcado, e como é difícil para as mulheres vencerem e ocuparem o espaços, aliás, ser-lhes dado o espaço que elas merecem.

Há outros momentos em que ele intervém, mas esse é de facto cómico, como descreveu.
Há outros momentos em que acho que ele intervém ainda mais na experiência. Quando manipula os questionários, por exemplo. Ou quando tira o papel de capitão à Maria, ele intervém na sua própria experiência, como também mete todas as vidas em risco, ao assumir o papel de capitão: despedindo a única pessoa na jangada que sabe navegar no mar. No material de arquivo foi difícil de trabalhar essas situações, porque tínhamos oito horas, que é muito material, mas também pouco. Quando procuras por cenas neste material, que não tem som, todo o som no filme é recriado, foi difícil encontrar cenas que pudessem combinar com o texto. A cena do mergulho é um bom exemplo de como as duas coisas se encontram, porque é mesmo isso que está a acontecer, e dá para ver que ele está quase a afogar-se e que está cansado quando regressa ao barco. Essa foi fácil, mas também é construída com outros bocados de cenas de mergulho. Se calhar há ali duas cenas de mergulho que parecem só uma.

Como é que obteve o material em vídeo? E o texto que o narrador lê, faz parte dos diários de Santiago?
Grande parte da narração vem dos seus diários, que foram publicados num livro que ele escreveu sobre a experiência. Mas eu reescrevi algumas cenas para serem mais eficientes. E também usei outros textos que ele escreveu, não sobre esta experiência em concreto, mas que sobre o mar, para enquadrar no diário que existe no filme. É um retrato da sua experiência, mas interpretada por mim. O material de arquivo foi muito difícil de encontrar. Toda a gente me dizia que estava perdido. O Santiago tinha acabado de morrer quando comecei a minha pesquisa, ele já não estava vivo, mas deram-me acesso à sua casa, praticamente um mês após a sua morte. Não conseguia encontrar os filmes em sua casa nem em qualquer arquivo fílmico no México. E quando estava prestes a desistir, encontrei um relatório de um laboratório de filme na Cidade do México, que eram a prova de 42 rolos de 16mm tinham sido revelados no final dos 1970s. Mas escreveram Acalli em vez de Acali. E telefonei novamente para um dos arquivos a perguntar se conseguiam encontrar com o nome mal escrito. E disseram que não, não, mas insisti e encontraram oito horas de material: que estariam perdido para sempre se não tivéssemos tentado o nome com esse erro.

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Isso foi em 2013?
Sim, mas só em 2014 é que confirmei a existência do material fílmico. Demorou quase um ano para encontrar.

Ao ver o seu filme e perceber como a experiência ocorreu, é impossível não pensar logo no “Big Brother” e em todos os reality shows que vieram depois.
Claro, totalmente. Ele está a criar o formato trinta, quarenta anos antes de existir. Ele estava a fazê-lo por razões científicas, e a reality TV é para entretenimento, mas há paralelos. Acho que ele poderia ser um bom produtor de conteúdos de reality TV. Mas duvido que ele gostasse de ouvir isso.

No seu filme tem em atenção a não exploração da ideia de “a jangada do sexo”. Porque é que acha que essa ideia pegou tanto nos média da altura?
Penso que, em parte, pegou porque nas conferências de imprensa que o Santiago deu antes da partida de Las Palmas, ele disse à imprensa que queria perceber comportamento humano, de uma forma geral, mas muito focado na violência e conflito. E queria olhar para as dinâmicas de poder num grupo, se a religião desempenha um papel e sexo. E quando ele disse que a sexualidade iria ser parte disso, e como era um grupo de jovens atraentes, de homens e mulheres, na altura era uma ideia algo extrema fazer uma expedição deste género com homens e mulheres. E a imprensa tabloide francesa e inglesa começou a tratar a experiência como “a jangada do sexo”. Penso que o Santiago ficou muito incomodado com isso, porque ele queria fazer algo sério, embora o sexo fosse algo que queria explorar, não era o principal. Mas acho que ele reconciliou-se com essa ideia e até acabou por adotar a ideia, o seu livro até se chama algo como “a verdadeira história da jangada do sexo”. Mas não era mesmo uma “jangada do sexo”, as pessoas não fizeram assim tanto sexo. Algumas fizeram, mas seria aquilo que esperavas de um grupo de pessoas que está sozinha no mar durante um período de tempo.

As pessoas que fizeram parte da experiência e com quem falou parece falarem menos de sexo e mais da atração que sentiram na altura. Como é que acha que a experiência influenciou a vida destas pessoas?
Claro que foi uma grande experiência, uma aventura enorme na vida destas pessoas: estarem três meses no oceano com um grupo de estranhos numa experiência científica. E estavam a arriscar a vida, apesar da vida no dia-a-dia ser muito simples, comem, trabalham, estão ao sol, talvez até fosse aborrecida, mas no plano geral, foi uma experiência mesmo perigosa: não tinham barcos a segui-los, não podiam voltar atrás. Toda a gente sobreviveu, nada de mal aconteceu no final, foi uma experiência que marcou a juventude deles. Acho que para alguns deles teve um impacto maior, como a capitã Maria, ela ficou traumatizada com a experiência, não falou sobre ela durante quarenta anos. Sentiu-se muito humilhada, por causa da ideia de “jangada do sexo”, e pela forma como foi tratada pelo Santiago. A Fay, por exemplo, ela passou grande parte da vida zangada com a experiência. Mas acho que atualmente ela percebeu que a experiência permitiu-lhe criar uma ligação espiritual com os seus antepassados. E agora, com o filme cá fora, creio que têm uma nova narrativa da experiência. Na semana passada estava no Chicago Film Festival e a Fay estava lá com a sua filha, ela adora falar sobre o filme. Ela gosta de ter a última palavra sobre o que realmente se passou.

O realizador, Marcus Lindeen (Foto: Emelie Asplund)

O que é que eles comiam na jangada?
Boa pergunta, porque isso de facto não é falado no filme. A jangada tinha um espaço de armazenamento muito grande na base. Eles tinham muitas caixas e garrafas com comida e bebida. Tinham tudo separado, por semanas, e todas as semanas tiravam uma caixa do armazém para usarem durante essa semana. E estava tudo controlado para não ser contaminado. E quase no final da viagem, quando estavam próximos de Barbados, surgiu um barco com mais mantimentos, para o percurso final. Mas a comida nunca foi um problema.

No final, Santiago parece que não ficou muito satisfeito com a experiência. No final do filme ele fala em fazer a mesma experiência mas só com uma pessoa, isolada de tudo e de todos. Do que investigou e leu também ficou com essa ideia?
Penso que ele não ficou feliz com a experiência. Não resultou como ele esperava e como não conseguiu tirar muitas conclusões da experiência, não obteve o sucesso que queria. No que investiguei, nunca li nada dele em que refira que tenha achado que a experiência tenha sido um falhanço. Foi por isso que foi importante colocar no filme o sonho que ele teve, da jangada individual: porque ele construiu mesmo aquela jangada, dez anos depois. Ele construiu-a e ia levá-lo de Las Palmas até ao México, tal como a Acali, mas dez anos depois, quando o guindaste ia colocar a jangada no mar, deixou-a cair e partiu-se. Por isso ele nunca chegou a fazer essa aventura kamikaze. Achei isso interessante e como resposta ele voltou ao México e escreveu um romance, sobre um Santiago que atravessa o oceano numa jangada solitária, com um fundo de vidro, e olha para o oceano e pensa sobre a sua vida, e chora lágrimas masculinas no oceano. Ele tornou essa história em ficção e na sua fantasia, ele concretizou esse desejo. Transformou em arte o seu falhanço.