O terreno é arenoso, meio descampado. Os copos de plásticos e pacotes de comida rápida espalhados pelo chão – batatas fritas, sandes de máquina automática, por aí – compõem a paisagem. Vai chegando gente, curiosa, com roupa desportiva, que apalpa o terreno indicado pela música eletrónica – techno dos anos 90, sobretudo. Estamos numa daquelas raves de fim do mundo, cuja localização provavelmente só se encontra por GPS, ou, quando este ainda não existia pelo som das colunas que vai fazendo o chão tremer e indicando o caminho. Estamos em Crowd, o mais recente espectáculo de Gisèle Vienne, coreógrafa e artista multidisciplinar franco-austríaca que se apresenta este sábado e domingo na Culturgest, em Lisboa.

E metamos multidisciplinar nisso. É que Gisèle, além de coreógrafa, é artistas visual e plástica, é marionetista, é encenadora, é realizadora, é música, é fotógrafa, é o que lhe der para ser. É daquelas artistas insatisfeitas, que não se contenta com uma ocupação profissional unidimensional, tudo muito por culpa da sua mãe.

“A minha mãe é artista e treinou-me muito em casa, pintura, escultura, é uma prática de casa, diferente de um treino de escola. A dança apareceu cedo, tal como a música, mas foi quando estudei filosofia que percebi que podia ser várias coisas, foi assim que acabei a ser artista visual, realizadora e coreógrafa, entre outras coisas”, explica.

Além dessa formação caseira, dessa escola de autor oferecida pela mãe, Gisèle estudou tudo e mais alguma coisa, da dança à música e às marionetas, aliás, foi sobretudo nesse formato que já se apresentou em Portugal. A Convenção dos Ventríloquos que passou no Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP) em 2016, tal como Jerk, em 2011, no Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA), em Lisboa. Ano onde também passaria pelo FIMP com showroomdummies #2. A isto acrescentem-se discos editados, instalações em museus, exposições de fotografia, filmes e livros… quase que apetece dizer que Gisèle Vienne é uma artista total.

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[veja aqui imagens de “Crowd”:]

Ainda falta aqui um detalhe, claro, daqueles que não são detalhe nenhum, antes coisa essencial para perceber a sua forma de estar, a super-cola disto tudo, que é o seu gosto (e sim, também estudou, claro) por filosofia: “É algo que me ocupa bastante tempo, leio muito, é importante para mim enquanto artista, junta as coisas. Sinto que estou sempre a trabalhar elementos diferentes numa forma muito musical e coreografada, todos os parâmetros do movimento, do som à luz, tudo isso cria narrativa. O meu trabalho não é segmentado, quando estou a coreografar não estou só a fazer isso, estou a trabalhar a música, eventualmente a imagem, há um conceito a que me proponho e que pode desaguar em vários objetos artísticos”, esclarece.

Sobre o seu trabalho, dizem os entendidos que é uma mescla de beleza e estranheza, sem qualquer intenção de rima, atenção. E Gisèle quase concorda:

“Diria que tomo especial atenção à contradição entre caos e ordem, e sim, acho que a beleza me importa particularmente porque a beleza pode ser o caos, pode ser a ordem, pode ser a destruição. A beleza pode seguir rumos tão diferentes, a beleza como ruína, a ruína da paisagem ou do edifício que se refere bastante ao estado da nossa sociedade contemporânea, e interessa-me também o belo do corpo perfeito, da harmonia. E sim, também acho que o meu trabalho é estranho, claro que acho, mas o que faço é tentar criar novas linguagens, porque isso me permite olhar o mundo de forma diferente, esperemos que o mundo possa ser estranho nesse sentido”.

O que não será assim tão estranho, tendo Gisèle Vienne proposto uma coreografia que recupera as raves em matos e sítios recônditos, é que a franco-austríaca tenha frequentado este eventos. “Crowd parte da ideia das festas dos inícios dos anos 90 que encontrei muito entre Grenoble, Genebra e também Berlim, isto porque com 16 anos fui estudar para Berlim, em 1993. E lá há muito essa cultura do techno. E essa forma de estar berlinense também influencia o espectáculo, porque o que quis foi misturar uma ideia de festa ancestral e de festa contemporânea, no início há algo de ritualístico mas depois vai-se moldando em comportamentos mais atuais”, comenta.

Em “Crowd”, Gisèle Vienne revela uma coreografia que recupera as raves em locais recônditos

Uma coisa é certa: o movimento sugerido em Crowd não é comum. Os quinze dançarinos toldam-nos a vista, é como que uma comunidade que tanto se pode mexer em uníssono – no mesmo milésimo de segundo – como cria pequenos interações a dois ou em grupos maiores. O gesto brusco varia com um hiper-slowmotion que contamina todo o espectáculo, são relações e conflitos, sedução, erotismo e afastamento, sai daqui, não me chateies, há de tudo em Crowd. E há tempo para tudo, como sempre há nestas festas, onde evitamos espreitar os ponteiros. “Queria um grande leque de emoções e por isso trabalhei muita medição com os dançarinos, para os colocar os seus corpos num reflexo de tempo presente, de consciência, um corpo hipersensitivo, no fundo, que se mexe de uma forma muito lenta ou interrompida, algo muito mais orgânico e real do que técnico, a técnica aqui é secundária, as transformações são várias e repentinas. E também há aquela coisa do overlap, da sobreposição do tempo, há inúmeras camadas de tempo e ritmos sobrepostas que me parece umas das questões centrais desta criação, o tempo, a forma como lidamos com ele, até porque isso permite ao público ver cada detalhe do corpo destes bailarinos com mais precisão, é uma proposta diferente, acho eu”.

O que também não pode ser ignorado é a condição de ser francês hoje, num país de pernas para o ar, que logicamente influencia quem lá vive, quem lá cria. “Não é fácil ser francês, hoje. Não entendo, também por ter duas nacionalidades, posições nacionalistas, transcende-me e vejo tomadas de posição nacionalistas da extrema-esquerda à extrema-direita. O que quero é tentar perceber porque é que as pessoas vão por esse caminho, da radicalização, do nacionalismo, e isso pode-se ver nos EUA, na Alemanha, no Brasil, em todo o mundo, porque é que estamos a fazer isto? Gostava de entender o mecanismo por detrás disto, o que é que afunda as pessoas numa coisa que analisada ao detalhe não faz qualquer sentido. O cenário é mau, estava a tentar encontrar outra forma de dizer, mas acho que não há: está tudo fodido”, conclui Gisèle. Só não repetimos as suas últimas palavras porque não parece bem.