Na Venezuela, está tudo à espera dos militares. É essa a ideia que fica de mais um dia em que o país se dividiu em dois lados que há muito não falam e muito dificilmente tornarão a fazê-lo a breve trecho. Uma metade, a oficialista, juntou-se este sábado nas ruas para assinalar os 20 anos da chegada de Hugo Chávez ao poder e a jurar outros tantos para o seu sucessor, Nicolás Maduro. A outra metade, a opositora, juntou-se para respaldar o autoproclamado Presidente Juan Guaidó, que anunciou esta tarde a criação de três centros de ajuda humanitária em redor das fronteiras venezuelanas.

No meio disto tudo, só faltaram mesmo os militares. Sem que surgissem notícias de distúrbios entre autoridades e civis durante esta saída coletiva às ruas, os homens e mulheres de farda foram os grandes ausentes deste 2 de fevereiro — mas também foram aqueles pelos quais as duas Venezuelas mais chamaram, cada uma pela voz dos seus líderes.

Do lado de Juan Guaidó, essa foi uma das suas principais preocupações, sobretudo depois de ter anunciado a criação de três centros de recolha e envio de ajuda humanitária em três pontos distintos às portas da Venezuela: em Cúcuta, cidade colombiana por onde passa a maior parte dos migrantes venezuelanos; no Brasil e numa ilha do Caribe, ambos em locais ainda por designar.

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Uma vez que essa ajuda humanitária terá de penetrar as fronteiras venezuelanas, que são controladas pelos militares, Juan Guaidó dirigiu-se a estes dizendo-lhes: “Você, soldado, capitão, tenente, coronel, capitão de navio, terá nas suas mãos a decisão de deixar entrar e manter a salvo essa ajuda humanitária”.

O apelo de Juan Guaidó surgiu na mesma altura que os EUA anunciavam já terem enviado pacotes de ajuda humanitária com destino final na Venezuela, tudo parte de um esforço de 20 milhões de dólares (17,4 milhões de euros). O autoproclamado Presidente interino da Venezuela disse que ia ser dada a prioridade aos “250 a 300 mil venezuelanos em risco de vida por desnutrição, por falta de medicamentos, hemodiálise, insulina, tratamento para o cancro, entre outras coisas”.

Juan Guaidó falava em Las Mercedes, o bairro no Este de Caracas onde as várias marés de manifestantes anti-Maduro foram desaguar a um comício que contou com a participação não só de líderes políticos da oposição mas também de comunidades de imigrantes, entre os quais luso-venezuelanos.

Do outro lado de Caracas, a Oeste, no meio da Avenida Simón Bolívar, o outro Presidente, Nicolás Maduro, que diz sê-lo “por decisão soberana e constitucional”, acusava a oposição e Juan Guaidó de “venderem o país por 20 milhões de dólares” e rejeitava qualquer tipo de ajuda humanitária. Rodeado de caras com a pele mais escura do que as que rodeavam Juan Guaidó — no chavismo, sempre se procurou promover a ideia de um país indígena frente aos escualidos associados às elites —, Nicolás Maduro disse: “Nunca fomos nem seremos um país de mendigos. Digo-o com firmeza. Somos um país de dignidade, de honra, de orgulho nacional. Somos um país de gente com a cara levantada”.

Petróleo, ouro e poder: como Maduro comprou os militares e garantiu (até ver) o seu apoio

A lealdade dos militares é o tema na ordem do dia da Venezuela — e o lado para onde penderem as forças de segurança, como a Polícia Nacional Bolivariana, e as forças militares, como a Guarda Nacional Bolivariana e as Forças Armadas, estará mais perto de ser vitorioso. Para já, é junto de Nicolás Maduro que os militares estão em peso. Depois de anos de purgas que afastaram os setores avessos ao ditador venezuelano e também da montagem de esquemas de enriquecimento fácil e rápido para aqueles que estão do seu lado — ficando estes com o monopólio do negócio do petróleo, da distribuição de comida e também do narcotráfico —, os homens e mulheres de farda demonstram-se, até agora, leais ao chavismo.

Houve, porém, uma exceção este sábado. À medida que os manifestantes davam os primeiros passos nas ruas, o general de divisão da Força Aérea Francisco Estéban Yánez Rodríguez declarou que desconhecia a autoridade de Nicolás Maduro e reconheceu da sua parte Juan Guaidó como chefe de Estado. “A transição para a democracia está iminente. Continuar a pedir às Forças Armadas que reprimam o nosso povo é continuar com as mortes por fome e doença”, disse. “Aos meus companheiros de armas peço que não virem as costas ao povo da Venezuela. Não reprimam mais.”

Venezuela. General de divisão da Força Aérea reconhece Guaidó como Presidente

Foi precisamente nesse sentido que agiram os membros da Polícia Nacional Bolivariana na cidade de Barquisimeto, no estado de Lara, quando se viram frente a frente com os manifestantes que ali saíram às ruas para defender Juan Guaidó.

De acordo com um relato reproduzido em vários meios de comunicação social — mas do qual não há nem registos, desconhecendo-se também os nomes dos intervenientes — um polícia, presumivelmente num cargo de liderança, terá dito aos manifestantes: “Prefiro retirar os meus homens a reprimir o povo”. Certo é que a polícia arredou o pé e deixou os manifestantes anti-Maduro passar, o que levou a que alguns chegassem a trocar abraços — uma imagem que até há pouco tempo não rimava com Venezuela, mas que este sábado se tornou mais real.

O caso de Barquisimeto foi assinalado por Juan Guaidó no seu discurso desta tarde de sábado. Falando sobre o suposto polícia e a sua alegada afirmação perante os manifestante, Juan Guaidó disse:

“Provavelmente, esse funcionário terá hoje consequências, pelo que merece um grande reconhecimento da nossa gente. Você é um soldado digno, você é um polícia digno, que está do lado do seu povo, do sofrimento do nosso povo. Não tenha dúvidas de que esse gesto será repetido por muitos funcionários e muitos militares, muito em breve. Não só para que entre a ajuda [humanitária] mas para que acabe a usurpação de uma vez por todas e para dar valor à nossa Constituição”.

Ora, do outro lado de Caracas, Nicolás Maduro referia que tinha diante de si mesmo a “Venezuela invisível”, feita de um “povo que luta há 20 anos” e que a “televisão mundial” não mostra. “Pois bem, aqui estamos, os invisíveis da Venezuela!”, fincou o líder chavista.

Na retórica chavista, ao lado desses invisíveis aparecem sempre os militares — não tivesse sido Hugo Chávez um deles, ele próprio com uma tentativa de golpe de Estado falhada, em 1992, no currículo; e outro a que sobreviveu, em 2002 —, ideia consagrada no conceito de uma “união cívico-militar”. Para Nicolás Maduro, esta permanece inabalada pese embora o discurso da oposição e de diferentes dirigentes norte-americanos, como disse. “Dá vergonha alheia ver como cada dia pelo Twitter chegam ordens de Mike Pence, John Bolton, Mike Pompeo, do que [a oposição deve] fazer. E eles, a partir da Venezuela, enganam-nos e dizem:

‘Estamos a governar, todo o país nos obedece, as forças armadas obedecem-nos’. Engano, engano e mais engano!”

O tom de Nicolás Maduro, para lá de combativo, foi de otimismo. Além de reafirmar a sua disponibilidade para convocar eleições parlamentares antecipadas em 2019 — uma cedência que não chega para a oposição nem para a comunidade internacional que lhe pede eleições presidenciais e não legislativas —, o ditador venezuelano afirmou que este ano “vai ser o ano definitivo da recuperação económica da prosperidade e da solução dos problemas do venezuelanos”. Para isso, garantiu, bastava assegurar a união do povo com as forças armadas, “defendendo a paz e com o trabalhos de todas e todos”.

E, em caso de dúvidas, convocou um exercício “cívico-militar” para 15 de fevereiro que pretende ser “o maior dos 200 anos da República Bolivariana da Venezuela”. “Os venezuelanos são pacifistas mas também são guerreiros. Somos guerreiros da paz”, sublinhou.

Juan Guaidó e Nicolás Maduro não estiveram, pois, apenas em dois lados diferentes de Caracas — estiveram também em dois lados irreconciliáveis de um único país. São dois mundos separados. Mas, no final, por mais diferenças que tivessem, cada líder incitou os seus fiéis a fazerem um juramento de braço erguido.

Juan Guaidó jurou e fez os seus apoiantes jurarem que todos iriam “manter-se nas ruas até conseguir o fim da usurpação e o governo de transição e as eleições livres”. Já Nicolás Maduro, jurou e fez jurar “manter a união cívico-militar” e a derrota do “intervencionismo imperialista”, sem que fosse dado qualquer “descanso aos nossos braços nem à nossa alma”. Resta saber qual dos dois juramentos os militares estão dispostos a fazer.