O desembargador autor do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que acusou o juiz Ivo Rosa de quebrar a “legalidade democrática” ao exorbitar “flagrantemente o limite das competências do juiz de instrução” durante fase de inquérito” e “violar a autonomia do Ministério Público“, como o Observador noticiou em exclusivo em fevereiro, foi obrigado a reconhecer esta terça-feira a nulidade de um acórdão de fevereiro de 2019 que continha esta forte censura ao magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal.

Tudo aconteceu devido a uma reclamação apresentada pela defesa de António Mexia e João Manso Neto, cuja equipa é liderada pelo advogado João Medeiros (PLMJ), que suscitava a declaração de nulidade do referido acórdão. Medeiros invocava um erro do desembargador Ricardo Cardoso no ato da distribuição: não se tinha declarado impedido de participar nos autos do caso EDP por a sua mulher, Anabela Cardoso, também desembargadora na Relação de Lisboa, já se ter pronunciado por duas vezes no mesmo processo — como obrigava o Código de Processo Penal que estipula que os juizes que sejam cônjuges não podem tomar decisões sobre o mesmo processo. Não tendo feito isso, a defesa alegava que se verifica uma nulidade insanável.

António Mexia e Manso Neto querem anular acórdão que criou risco disciplinar para Ivo Rosa

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O próprio Ricardo Cardoso, secundado pelo desembargador Artur Vargues (que também assinou o acórdão que foi agora declarado nulo), deu razão à defesa de António Mexia e João Manso Neto. Cardoso alega no acórdão emitido com a data de 26 de março de 2019, a que o Observador teve acesso, que não sabia que a sua mulher, a igualmente desembargadora Anabela Cardoso que trabalha no mesmo tribunal mas noutra secção, tinha tido intervenção nos autos do caso EDP. “(…) no caso referido, do relator [Carlos] Espírito Santo, o seu adjunto é e foi quase sempre, com exceção de um muito curto, outro que não a senhora desembargadora Anabela Simões Cardoso, pelo que a intervenção desta não nos era conhecida, nem sequer imaginável, tendo-nos passada totalmente despercebida a todos“, escreve Ricardo Cardoso.

Ricardo Cardoso e Artur Vargues, contudo, fazem questão de dizer que tal desconhecimento não se verificará na equipa da defesa de António Mexia e João Manso Neto. “[Eram] conhecedores da totalidade de todos os antecedentes e muito variados acórdãos proferidos nos vários recursos do caso, em processos — sempre — autónomos e separadas, como demonstra a junção, em 24 horas após a publicação do acórdão, do assento de nascimento da senhora desembargadora, com averbamento do casamento com o relator [Ricardo Cardoso]”, lê-se no acórdão. Assim, só após a publicação do acórdão de fevereiro, e consequente recurso da defesa, é que “nos foi conhecido o impedimento do relator”– o qual não foi declarado, repete Ricardo Cardoso, por “desconhecimento.”

O que acontece agora à apreciação do recurso do Ministério Público que esteve na origem do acórdão de fevereiro de 2019 agora anulado ? Terá de ser repetida, sendo efetuada nova distribuição na Relação de Lisboa. Ricardo Cardoso não poderá apreciar esta questão novamente.

E o que estava em causa no recurso do MP? Estava em causa um despacho de Ivo Rosa de 23 de maio de 2018, no qual o juiz de instrução declarou nulas, a pedido da defesa de António Mexia e João Manso Neto, uma série de decisões dos procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, titulares da investigação do caso EDP, sobre os presidente e administrador da EDP  — ambos arguidos pelos alegados crimes de corrupção ativa e participação económica em negócio. A saber:

  • Pedidos de informação bancária, fiscal e de emails que fazem parte dos processos BES/GES e da Operação Marquês. Os pedidos foram autorizados pelo juiz Carlos Alexandre, magistrado titular daqueles autos no Tribunal Central de Investigação Criminal, mas o juiz Ivo Rosa anulou as autorizações do seu colega;
  • Pedidos de informação bancária sobre todas as contas de António Mexia e João Manso Neto dirigidos ao Banco de Portugal.
    As questões de fundo no acórdão de Ricardo Cardoso têm essencialmente a ver com a autonomia do MP na fase de inquérito e o papel do juiz de instrução na mesma fase. Os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto entendiam que o juiz Ivo Rosa não tinha qualquer competência para anular pedidos de prova que a lei define como sendo da exclusiva competência do MP, enquanto Ivo Rosa (e a defesa de Mexia e Manso Neto) entendiam o contrário.

Comunicação ao Conselho Superior da Magistratura contra Ivo Rosa mantém-se

Recorde-se que, tal como o Observador noticiou em exclusivo, os desembargadores Ricardo Cardoso e Artur Vargues tinham decidido a 19 de fevereiro comunicar o seu acórdão ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) para posterior avaliação disciplinar contra o juiz Ivo Rosa. Tudo porque os desembargadores acusavam o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal de estar a violar anteriores decisões da Relação de Lisboa e a violar “a jurisprudência “pacífica” dos tribunais superiores, “que [Ivo Rosa] não desconhece” com interpretações “peregrinas”, “extravagantes e marginais” reveladoras “do desconhecimento do propósito do legislador”. Além disso, Ricardo Cardoso afirma que a atuação do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal ao longo de todo o caso EDP “resulta na obstaculização à aquisição de prova indiciária ainda antes de saber se ela existe e do conhecimento do seu teor”.

Caso EDP. Ivo Rosa com nova derrota na Relação de Lisboa e participação disciplinar

Apesar de declararem agora como nulo esse acórdão de fevereiro, os desembargadores Cardoso e Vargues decidiram manter essa comunicação disciplinar ao CSM,“independentemente do trânsito”. “Pela inusitada tramitação dos autos até ao presente incidente, com as muitas tomadas de tempo e de trabalho, remeta-se certidão ao Conselho Superior da Magistratura”, lê-se no acórdão.

Não é líquido, contudo, que o acórdão de 19 de fevereiro que foi agora anulado possa dar lugar a uma avaliação disciplinar contra Ivo Rosa. É que tendo sido declarado nulo, o respetivo conteúdo não existe do ponto de vista legal.