Ao longo dos anos 1990 e em grande parte da primeira década deste século, os Violent Femmes passavam muitas vezes por Portugal. Muitas vezes em Queimas das Fitas. Havia um pequeno culto local, uma fascínio pela banda norte-americana que começou como uma banda punk que não soava ao punk original ou aquilo que era marketizado. Mas eles eram punk. O fascínio ter consequências, Gordon Gano, o vocalista dos Femmes, chegou a colaborar em O Monstro Precisa de Amigos, o último álbum dos Ornatos Violeta, na canção “Capitão Romance”.

[Num momento que ficou cortado na conversa, Gordon Gano perguntou “como é que soo a cantar português para um português?”. Estava com receio de soar estranho, de ser algo alienígena como Nico, no primeiro álbum dos Velvet Underground. Ficou feliz por saber do regresso dos Ornatos Violeta e de que Manel Cruz continua a surpreender-nos com as suas canções].

Hotel Last Resort é o segundo álbum dos Violent Femmes depois de terem regressado à atividade em 2013. O sucessor de We Can Do Anything (2016) é apenas o terceiro álbum da banda neste século e reúne uma série de canções que ficaram por gravar durante as últimas duas décadas – por causa de conflitos internos da banda – e outras novas. Soam jovens, como sempre soaram. Estivemos à conversa com Gordon Gano para perceber como se chega ao Hotel Last Resort.

A capa de “Hotel Last Resort”, dos Violent Femmes

Este é o vosso segundo álbum desde que se voltaram a reunir em 2013 e, apenas, o terceiro neste século. Pode-me contar um pouco sobre a génese de Hotel Last Resort?
Não tenho a certeza de quem teve a ideia. Talvez tenha sido o Brian Ritchie que me disse: vamos fazer um álbum novo. Não me recordo mesmo quem disse, talvez tenha sido uma decisão do nosso manager. Mas a minha reação foi muito prática: sim, vamos fazer isso, isso soa bem. O problema foi encontrar uma altura para o fazer, onde e com quem o iríamos fazer. Neste caso, também envolvia um produtor [Ted Hutt], foi ótimo trabalhar com ele, fiquei muito feliz. Tivemos de pensar em tudo, que instrumentos, quais serão os temas deste álbum, com quem iremos trabalhar. E assim que resolvemos isto tudo, temos de pensar nas canções. Sempre tivemos canções que ficaram por gravar. É uma questão de decidir isso tudo. Eu tinha algumas canções antigas. Fomos para estúdio depois de uma digressão e, durante a digressão, mostrava algumas dessas canções e íamos tocando-as. Outras só as mostrei em estúdio, mas só aquelas que achei que valiam a pena. Os arranjos das nossas canções normalmente surgem-nos muito rápido, é raro mudar de direção.

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Ou seja, já tinha canções preparadas antes da ideia de um novo álbum ser real?
Sim, escrevi tantas canções ao longo dos anos… Há sempre canções que nunca gravámos, ou que ficaram para trás porque não tivemos tempo para a gravar, ou não soavam como queríamos na altura. Não é uma questão de, naquele momento, soarem melhores ou piores, simplesmente não conseguíamos enquadrar num álbum. E há canções que ficaram completamente esquecidas e que depois descobrimos e que me lembro de que gostava muito. Neste álbum, pensei que deveríamos escrever algumas canções novas, porque iríamos para estúdio. Não queria que fossem só novas para o resto da banda, mas também para mim, esforçar-me para criar algo que não existia e passar pelo processo todo de gravação de uma canção. Escrevi algumas assim, que foram escritas algumas semanas antes de irmos para estúdio e outras têm vinte anos, ou mais.

Estou a perguntar-lhe isto porque comecei a ouvir a vossa música no início dos 2000s. Basicamente, passei a maior parte da minha vida sem ter um novo álbum dos Violent Femmes [risos]. E nos últimos anos voltaram a editar. Vamos saltar a história de quando acabaram e se voltaram a juntar: como é que se sentia por não editar canções que provavelmente escreveu ao longo dessa década e meia?
Não foi algo que pensasse ativamente. Porque estava sempre a escrever e, criativamente, continuei a trabalhar a solo e com outras pessoas. Gravei o Under The Sun, enquanto Gordon Gano & The Ryans [2009], esse álbum tem algumas das canções que mais me orgulhei de escrever. Sempre toquei, estive sempre a tocar com outras pessoas, a experimentar novos instrumentos. Apesar dos Violent Femmes não estarem criativamente ativos, a escreverem canções… e há um momento em que estávamos a tocar, em digressão, mas havia um membro da banda que não queria gravar as canções que eu escrevia. Bom, isso fez com que não gravássemos, mas continuávamos a tocar e as pessoas gostavam. Aliás, o público gostava mais do que nós. Mas foi sempre divertido tocar as nossas músicas e foi sempre um prazer. Esqueci-me da tua questão… ah, nunca senti nenhuma frustração em relação a isso. Penso que uma boa canção… é muito raro escrever uma canção que tem de ser ouvida aqui e agora, em oposição a ser ouvida noutra altura. Sempre houve um lado intemporal nas nossas canções. Por exemplo, Hotel Last Resort é uma das canções mais longas que escrevi e é uma que gosto muito… e escrevi-a há mais de vinte anos. E ela existir agora e existir da forma que existe, poe der ser tocada e ouvida por toda a gente, deixa-me muito feliz.

[“I’m Nothing”, tema do novo álbum:]

Como é que essa canção surgiu e o que é que o título significa?
É algo… não sei se traduz bem para outras línguas. Mas há “resort hotels” [hotéis resort] e a ideia de “last resort” [último recurso], é uma expressão em inglês que significa que é a tua última oportunidade ou recurso. Esse tipo de jogo de palavras diverte-me. Foi algo que comecei a escrever quando tivemos um espectáculo muito incomum, que foi num resort hotel, foi provavelmente a única fez que fizemos algo do género. Senti-me estranho… foi um sítio estranho para tocar. Não foi muito desagradável, mas não foi agradável. E comecei a escrever esta canção no hotel… é muita imaginação, muito a acontecer, sem saber exatamente para onde ir.

Esse tipo de espectáculos são hoje mais comuns do que há uns anos…
Sim, tens razão.

Como é que surgiu a colaboração com Tom Verlaine [toca guitarra na canção “Hotel Last Resort”]? Imagino que os Television foram muito importantes para si, até antes de começar os Violent Femmes…
Sim, claro. Eu adoro-os e acho que o Brian Ritchie… para ele era a banda favorita dele naquela altura. Para mim eram outras, como os Ramones, Johnny Thunders and the Heartbreakers, Richard Hell, todas essas bandas se conheciam e todos eles tocavam juntos, nas bandas uns dos outros. Eu ouvia muito isso. Mesmo antes de começar a banda. Tinha quinze anos quando vi ao vivo Johnny Thunders and the Heartbreakers… foi uma experiência incrível.

Onde os viu?
A história é maravilhosa. Vi-os no Max’s Kansas City em Nova Iorque. Foi no ano em que editaram o álbum Live At Max’s Kansas City, não estive nesse concerto, mas o espectáculo foi o mesmo. Foi exatamente o que vi ao vivo. Foi incrível ter tido essa experiência. Não me deixou a pensar: é isto que quero fazer. Mas confirmou essa ideia. Era o que eu queria fazer, tal como um milhão de outras pessoas. Mas ver aquele espectáculo… foi o concerto mais espectacular que alguma vez vi e alguma vez verei. Penso que a idade contribuiu para isso, um miúdo de quinze anos a experienciar isso.

Voltando ao Tom Verlaine…
Tom Verlaine… os Television são a banda que ouvia mais e ainda hoje os oiço. Ouvia mais do que a música que mais gostava naquela altura. Há qualquer coisa na musicalidade deles, é algo que cresceu comigo ao longo dos anos. Billy Ficca é um dos meus bateristas preferidos, não só nos Television, mas também nos outros projetos. Estava sempre atento ao que ele andava a fazer. Normalmente, gravamos tudo ao vivo em estúdio. Ao gravarmos a canção, o Brian disse que havia ali algo de Television. E alguém disse: “deveríamos meter uma espécie de guitarra à Tom Verlaine”. E eu lembrei o Brian que ele conhece o Tom Verlaine, porque é que não lhe perguntava. Ele fez isso, o Tom disse que sim, e enviámos a música sem quaisquer instruções. E ele fez aquilo que agora ouves.

[a canção que dá título ao álbum:]

De certeza que conhece ideia de que toda a gente que ouviu o primeiro álbum dos Velvet Underground na altura, começou uma banda. Tinha quinze anos, vê um concerto fabuloso em Nova Iorque. Numa altura em que o punk nova iorquino está a acontecer. Os Violent Femmes, quando surgiram, eram conotados como uma banda punk, mas não soavam como a maioria das banda punk daquele período. Como é que foi estar, mesmo que por momentos, no epicentro disso tudo e como é que o influenciou a interpretar, à sua maneira, o punk?
Acho que me aconteceu o mesmo. Ouvi o álbum dos Velvet Underground e quis fazer uma banda. Ouvi o álbum imensas vezes. Vi aquele concerto do Johnny Thunders porque estava em Nova Iorque, a visitar um irmão mais velho que vivia lá. Não estava lá constantemente. Mas penso que muito tem a ver… o Brian Ritchie e a vontade dele de tocar outros instrumentos, de evitar o padrão de uma formação punk, penso que isso nos influenciou muito. O Victor DeLorenzo, o nosso primeiro baterista, a forma como ele tocava, como lia a mistura de jazz e de rock numa bateria… ele não tocava com um set típico de rock. Havia muita coisa a acontecer. Se as coisas dependessem de mim, eu só iria fazer uma banda de rock. Mas por causa deles, foi imediato começarmos a experimentar coisas diferentes. Muito do nosso som surgiu de necessidade, como não conseguíamos tocar nas salas… um dia vimos um vagabundo a tocar na rua e pensámos: porque é que não fazemos isto? Então começámos a tocar na rua, com instrumentos acústicos. Não tínhamos a tecnologia nem o dinheiro para ter amplificadores, microfones, geradores. O nosso som era diferente das outras bandas punk, mas surgiu como consequência disso. Embora a maior parte das canções, quando eu pensei nelas e as escrevi, estava a pensar numa guitarra elétrica e num baixo elétrico, mas as coisas seguiram um caminho diferente. E estou muito feliz que tenha acontecido assim.

Os Horns Of Dilemma são um veículo para continuarem a expandir essa veia criativa?
Do meu ponto de vista não é uma tentativa de criar algo que soe diferente. Mas de explorar musicalmente algo que gostamos. Foi um nome que o Brian inventou. A ideia era ter uma secção de metais, mas depois expandiu-se para qualquer pessoa que tocasse connosco ao vivo. O primeiro clube onde começámos a tocar regularmente chamava-se Jazz Gallery e era uma sala de jazz. E fez sentido para nós ter músicos a tocarem connosco e a improvisarem. A improvisação sempre foi uma componente importante do nosso trabalho. E com os Horns Of Dilemma teríamos vários músicos e ao invés de lhes dizermos: esta é a tua vez de tocar, tocas durante x tempo, depois tens um solo. Não, a ideia era de todos solarem e construir-se uma ideia diferente sobre a música que fazíamos em palco. Foi o Sun Ra que me fez pensar nisso. Foi uma influência muito importante para nós, no início da banda. Tínhamos as bandas punk, que já referi, como influência, mas a influência menos óbvia, que as pessoas não conheciam, era o Sun Ra. Foi uma influência enorme na forma como construímos a nossa música, e como a apresentámos ao vivo. Foi uma influência enorme para mim e para o Brian.

Chegou a vê-lo ao vivo? Eu só vi a Arkestra, sem ele.
Sim, vi imensas vezes. Cerca de dez vezes. O Brian uma vez disse-me que deve ter visto mais de cem vezes.

Isso é incrível. A Arkestra ainda é impressionante ao vivo… Começaram a banda há cerca de quarenta anos, ainda sentem que a vossa música chega às novas gerações, ainda vão aos vossos concertos?
Sim, isso sempre aconteceu. É sempre algo a que estou atento. Na última digressão isso não aconteceu, estávamos a tocar com uma banda que era mais velha que nós [os X] e, por isso, a audiência também era mais velha. Mas experienciámos isso ao longo dos anos, isso que perguntaste. Houve uma altura em que o público era sempre mais novo que nós, atualmente, desde há uns anos, é mais uma mistura. E também é muito comum encontrar crianças. No início, quando tocávamos na rua, as pessoas que mais reparavam em nós eram crianças e os idosos. O resto das pessoas ignoravam-nos.