“Over the Rainbow”, a canção que Judy Garland imortalizou em “O Feiticeiro de Oz”, fala de um mundo ideal de felicidade, paz e amor, algures para lá do arco-íris, onde todos os problemas se “derretem como gomas de limão ao sol”. Ao longo de uma vida demasiado breve (morreu com 47 anos), Garland raras vezes conseguiu chegar a esse outro lado do arco-íris. O filme “Judy”, de Rupert Goold, baseado na peça “End of the Rainbow”, de Peter Quilter, apanha Judy Garland (Renée Zellweger) muito para cá dele, nos últimos meses da vida, sem dinheiro e sem casa, expulsa com o filho Joey e a filha Lorna do hotel de Los Angeles onde viviam por não pagar a conta, e obrigada a deixá-los com o pai e terceiro marido, Sidney Luft, enquanto ruma a Londres com um contrato de cinco semanas para o prestigiado clube noturno Talk of the Town.

[Veja o “trailer” de “Judy”:]

Estamos no Inverno de 1968 e Garland é um caco ambulante. Não só por estar falida e longe dos filhos, mas também por causa da dependência da bebida e dos fármacos, desde os seus dias de glória na MGM e da rodagem de “O Feiticeiro de Oz”, em que, rigorosamente controlada pela mãe e paternalmente tiranizada por Louis B. Mayer, tomava comprimidos para não engordar, aguentar as longas horas de rodagem e conseguir dormir. Uma vez em Londres, a atriz e cantora declina ensaiar, não consegue dormir, mete-se nos copos e chega atrasada, quase falha o espectáculo de estreia, mas ajudada e empurrada para o palco pela assistente, Garland tem uma atuação triunfal. O desastre ambulante deu lugar à profissional consumada e à estrela carismática.

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[Veja uma entrevista com Renée Zellweger:]

Ao longo dessa prolongada estadia londrina, que culminaria na sua morte, por “overdose” acidental de barbitúricos, a 22 de Junho de 1969, dia em que fazia anos, Garland vai casar-se pela quinta vez, com o jovem DJ Mickey Deans e separar-se dele poucos meses depois; fazer a cabeça em água a Bernard Delfont (Michael Gambon), o empresário que a contratou, e à sua assistente; ora dar concertos eletrizantes e ser loucamente aplaudida, ora aparecer embriagada, não conseguir cantar, invectivar o público e ver-se insultada e vaiada; e manifestar-se encantadora e merecedora de simpatia, ou intratável e insuportável. Como dizia Dave Lee, o seu fiel pianista e amigo, “Quando ela era feliz, era maravilhosa. A melhor artista com quem já trabalhei. Meticulosa. Quando era infeliz, era difícil estarmos ao pé dela.”

[Veja uma entrevista com o realizador Rupert Goold:]

“Judy” é um filme certinho, competente, que inclui as costumeiras liberdades dramáticas e lugares-comuns de “biopic” sobre a diva em decadência acelerada, mas que é elevado pela presença de Renée Zellweger como Judy Garland. Contornando maneirismos preguiçosos e psitacismos ridículos, evitando o patético e sem exagerar o trágico, Zellweger, que recusou o “playback” e canta todas as canções, encarna-a numa interpretação que nos comunica o mais fundo do tormento e da infelicidade de Judy Garland, e o sublime e o indizível do seu extraordinário talento, o pesadelo privado e o génio público, a alegria arrebatadora que era estar com ela no seu melhor e o incómodo embaraçoso no seu pior. 

[Veja uma cena do filme:]

Renée Zellweger nunca é menos do que magnífica, quer quando incorpora toda a fragilidade, vulnerabilidade e mágoa de Garland (quando um médico que vai consultar lhe pergunta o que é que ela toma para a depressão, responde: “Quatro maridos”), quer quando a faz transcender a sua figura magra e diminuta e o desgosto que transporta como uma enorme mochila, ao apresentar-se em palco e arrebatar tudo e todos com canções estralejantes de vida e alegria, ou comover e calar a sala inteira com melodias melancólicas e intimistas. Toda a verosimilhança humana, emocional e artística da sua Judy Garland (sem esquecer o sentido de humor) está intimamente ligada à compreensão, à simpatia e à admiração que Zellweger sente por ela, e nos passa em simultâneo. Se não fosse por ela, estaríamos melhor a ler uma boa biografia de Judy Garland do que a ver “Judy”.