Chico Buarque tem andado nas bocas do mundo. Não é que o escritor e compositor brasileiro tenha alguma vez sido esquecido, mas desta vez as razões que fazem dele motivo de conversa não dizem apenas respeito ao seu talento mais do que reconhecido. Buarque, a quem foi atribuído o Prémio Camões, viu a entrega do galardão ser contestada por muitos dos seus compatriotas e, sobretudo, pelo presidente do Brasil por causa do seu posicionamento político. Jair Bolsonaro sugeriu que não assinará o diploma de entrega do Camões ao dizer que o faria “até 31 de dezembro de 2026”, data do final de um eventual segundo mandato. A declaração despontou uma onda de críticas entre os intelectuais brasileiros, e não só.

O Camões, a posição tomada por Bolsonaro e o porquê do Chico ser o Chico, autor de uma obra literária que merecia até o Nobel, foram tema de conversa este sábado, durante uma mesa redonda que reuniu no festival literário de Óbidos o editor Paulo Werneck, o escritor Geovani Martins, a editora Clara Capitão e a jornalista Isabel Lucas, a quem coube, por sorteio, fazer as perguntas. E foi precisamente pela razão do Chico Buarque ser simplesmente o Chico que Lucas começou a ronda de questões entre os restantes participantes, na Tenda dos Editores e Livreiros, instalada na Praça de Santa Maria da vila, um dos locais onde decorre até domingo o FOLIO. A plateia estava surpreendentemente cheia apesar do final de tarde em Óbidos prometer chuva.

Se Chico Buarque “não escrevesse numa língua tão periférica”, teria recebido o Nobel em vez de Dylan

Paulo Werneck, que foi editor de Buarque quando trabalhou na Companhia das Letras no Brasil, começou por apontar que existem pessoas que consideram o escritor e compositor como um homem da música e que, por isso, nunca deveria ter recebido o Prémio Camões. Algo com o qual Werneck discorda: “Acho que ele merece este prémio e até o Nobel da Literatura”, declarou, explicando que “a obra dele como poeta já basta para ganhar um prémio internacional. Ele é um cronista e um romancista nas suas letras. Tem personagens muito palpáveis. O diretor da revista literária Quatro Cinco Um, de São Paulo, que cresceu “ouvindo” as músicas de Buarque, admitiu que sabe “todas as letras de cor”. “É um repertório que emprega mesmo.”

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Giovani Martins, uma das novas vozes da literatura brasileira que conheceu a fama com a coletânea de contos Sol na Cabeça, muito elogiado pelo próprio Buarque, chamou a atenção para o aspeto “cerebral” da obra do escritor que, apesar disso, não deixa de o emocionar. “Acho que essa combinação de técnica muito apurada sem deixar de ser emocionante é o que mais me fascina no Chico Buarque enquanto poeta”, admitiu. Martins citou Sérgio Rodrigues, um dos seus cronistas brasileiros favoritos, que, quando o Chico recebeu o Camões, escreveu que se ele “não escrevesse numa língua tão periférica”, o Nobel que foi atribuído a Bob Dylan teria caído “no colo dele”. “Acho que é um autor que merece todas as nossas homenagens. Se o Chico tivesse parado de escrever ao terceiro disco, já mereceria o Camões. Já tem tanta coisa incrível e continua até hoje”, frisou o escritor.

A jornalista Isabel Lucas, aqui sentada ao lado do escritor Geovani Martins, foi responsável por lançar as perguntas

Martins lembrou também a importância da entrega do prémio literário numa altura em que existe muito “ódio à arte no Brasil”. “Estes artistas são fundamentais para a cultura brasileira, para a língua portuguesa. É o momento de os defender. Depois de tudo o que passaram, não consigo encontrar maior injustiça para estas pessoas do que serem crucificadas de maneira tão leviana por causa de um posicionamento ao outro”, disse. “É o momento de afirmar isto, e acho que este prémio veio numa altura muito importante.”

Também Clara Capitão, editora da Companhia das Letras e de Chico Buarque em Portugal, apontou a “relevância” e o “significado particularmente pungente” do Camões “a um artista, a um homem da palavra que não se demite de chamar a realidade e a política para a sua obra, que não se preocupa em alienar leitores ou compradores de discos, reclamando para si o direito de dizer o que pensa da situação do Brasil”. Porque “ele tem perdido” leitores e ouvintes, salientou Capitão que, apesar de nunca se ter encontrado pessoalmente com o escritor, costuma trocar emails com ele. “O jeitinho para a palavra até num email é visível”, revelou, admitindo ter ficado “feliz como editora” e como “grande amiga do Brasil” com a atribuição do prémio literário.

Ninguém ficou surpreendido “com essa palhaçada” de Bolsonaro não querer assinar

Quanto à reação de Bolsonaro, Werneck descreveu-a como uma “grosseria e uma falta de apreço pela cultura de forma geral”. “Ninguém ficou surpreso com essa palhaçada de se recusar a assinar”, afirmou, lembrando que, quando morreu o músico João Gilberto, o presidente disse apenas algo como “morreu uma pessoa conhecida”. Sobre a reação de Buarque, que considerou a não assinatura do diploma por Jair Bolsonaro um segundo Camões, Werneck disse que não achava que isso tivesse sido uma piada. “Quem quer ter um diploma assinado pelo Adolf Hitler? Ninguém. Ele ia sujar o diploma”, declarou. Defendendo que o Prémio Camões se politizou “bastante” nas últimas edições, o editor recordou que, durante a entrega do galardão a Raduan Nassar, que o venceu em 2016, o ambiente “já foi muito pesado”. A cerimónia decorreu depois de Temer, que fez Nassar quebrar o silêncio que tanto o caracteriza, ter chegado à presidência. Já Martins considerou que Bolsonaro fez o que sempre fez, “foi infantil”.

O festival literário de Óbidos arrancou a 10 de outubro e termina este domingo. A programação do último dia do FOLIO inclui, entre muitas outras coisas, um mesa redonda com Ondjaki e Júlio Almeida sobre “O medo em tempos de guerra” (Auditório Municipal Casa da Música, 15h), o workshop “Por amor à língua” de Manuel Monteiro (Museu Abílio de Mattos e Silva, 16h), uma conversa de Valter Hugo Mãe com Afonso Borges (Museu Municipal, 16h30) e uma mesa sobre as alterações climáticas com Pedro Matos Soares e Alexandre Quintanilha (Auditório Municipal Casa da Música, 17h). Pode ser consultado na íntegra aqui.

O Observador viajou até Óbidos a convite do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos