Queria afogar o tédio durante aquelas duas horas. Aquele intervalo entre as 17h30 e as 19h30. Aquele vazio que sucede ao trabalho e antecipa o jantar. Alec Waugh procurava uma alternativa ao tradicional chá. Os amigos a quem enviou convite para bebericarem álcool num horário sagrado achavam que lhe faltava algum, tamanha a deselegância. Apareceu um só convidado, em resposta ao invulgar desafio para participar na novidade: uma cocktail party.

Corria o ano de 1924 e o romancista, irmão mais velho do também escritor Evelyne Waugh (o mesmo de “Reviver o Passado em Brideshead”), não desarmou, depois dessa primeira tentativa gorada. “Voltei ao ataque no outono de 1925”, mas neste caso, como fez notar, “procedeu com mais cautela”. Entenda-se: a precaução envolvia ludibriar as visitas. O anfitrião voltou a despachar uma série de 30 convites, agora para um inofensivo chá das cinco. Como esperado, todos compareceram para o ritual da praxe. “Depois, quando faltava um quarto para as seis, fiz a minha surpresa – uma rodada de daiquiris”. Um conjunto de bebidas misturadas por um americano, funcionário da embaixada e amigo do dono da casa, que rapidamente terá caído no goto dos convidados. De tal forma que depois de uma visita guiada pela biblioteca do anfitrião, o chá já tinha arrefecido na lista de ocupações prediletas da nação ao final do dia.

O romancista Alec Waugh (1898-1981), com Joan Chirnside, depois do anúncio do seu noivado @ Hulton-Deutsch/Hulton-Deutsch Collection/Corbis via Getty Images.

Em 1974, Waugh, o “inventor da invenção” que desataria uma das maiores revoluções no lifestyle, explicava-se em palavras nas páginas da Esquire, que então publicava o artigo com o título “Eles riram-se quando eu inventei a cocktail party“. Ao longo dessas páginas, explicava como anos antes observara ao irmão Evelyne que acreditava ser o autor da invenção, façanha que, no entanto, pelas dúvidas suscitadas, terá motivado alguma ponderação quando se tratava de imprimir tal verdade no papel. Mas Waugh foi até ao fim. “Acredito que tenho razões para manter a ideia de que no círculo literário boémio que frequentava em Londres, fui eu quem deu a primeira cocktail party“.

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É nesse extenso artigo que Alec discorre sobre as agruras do pós-guerra e esse desgosto menor reservado aos homens que não se haviam empregado em escritórios no rescaldo do conflito — “não havia nada para fazer entre as cinco e meia e as sete”, desabafa, lembrando o modesto sucedâneo que eram os chás dançantes oferecidos por alguns hotéis, “mas dançar não é muito satisfatório quando não há uma garrafa e um balde de gelo na tua mesa”. Waugh recorda ainda o hábito do chá, na sua variante mais formal, e o excesso de comida que este tipo de eventos acusava, entre bolos, sanduíches e scones. Considerava mesmo que as tea parties deviam estar reservadas a “indulgência de domingo à tarde”. “Durante a semana, ninguém quer ser confrontado com tanta comida depois do almoço. De qualquer forma, as tea parties terminam às seis horas”.

Na Esquire, recorda ainda como partilhou o projeto com o pintor C. R. W. Nevinson, e a mulher deste, Kathleen, que então abriram as portas do seu estúdio para acolher a primeira festa pensada pelo escritor. Quanto às bebidas eleitas, xerez, Porto ou um vinho Madeira serviriam na perfeição, havendo ainda espaço para gim ou rum e uns queijos e bolachas de água e sal para picar. Foi então que em resposta aos convites, surgiu apenas um convidado, um “obscuro jornalista de meia idade que assinava colunas sociais para um jornal parolo”.

Monkey Mash. Entre sapos e macacos há muito cocktail tropical pelo meio

No outono desse mesmo ano de 1924, Waugh, de volta do romance “Kept”, suspirava por uma cena em que um casal se conhece durante uma cocktail party, rumando depois ao Soho em busca de uma mesa para jantar, um começo de noite que mudaria para sempre as suas vidas. “35 anos depois, haveria realmente de começar um romance assim. Mas em 1924 só me restava espalhar a palavra sobre as cocktail party“. Um ano mais tarde, no outono de 1925, a novidade foi mesmo introduzida, quando Alec logrou que os tais cerca de 3o convidados para “um chá das cinco” aceitassem a intrusão dos etílicos daiquiris. As notícias correram rápido, incluindo a que dava conta do excessivo consumo protagonizado pela escritora Sheila Kaye-Smith, que se viu obrigada a cancelar um jantar. A fórmula estava selada: uma festa com duração de 90 minutos, em que era servido álcool e pouca comida.

Amanhã é segunda-feira, mas hoje ainda é domingo e está tudo bem

Se Waugh terá o seu crédito na introdução da moda na ilha do Brexit, pelo menos em contexto moderno, a verdade é que a história do conceito é bem anterior à sua ousadia. Pelo menos, se considerarmos a tradição do cocktail em si mesmo, ou bebida de mistura, que crescera em popularidade na América e na Europa desde o começo do século XIX. Para a instituição da chamada cocktail hour muito terá contribuído a ilustre sociedade vitoriana desse tempo, que se habitou a degustar uma bebida, que não vinho, antes do prato principal, acompanhado de um pequeno snack, o embrião do famoso canapé.  Neste caso, e nos primórdios do século XX, terá mesmo ganhado força o conceito de oyster cocktail parties, com as ostras, ou outra variedade de marisco, a protagonizarem um pairing perfeito com o líquido nos copos.

Em abril de 1917, o jornal Tacoma Times dá especial destaque à festa oferecida pela socialite de St Louis, Clara Bell

Do outro lado do Atlântico, e ainda nesse século XIX, os registos não esquecem uma figura extravagante de Saint Louis, anfitriã de um encontro que lhe valeria muitos anos mais tarde o devido crédito concedido pela Wikipedia, que em certo momento a qualifica como a criadora da cocktail party. Em bom rigor, Clara Bell Walsh, ou senhora Julius, não inventou o conceito — apenas introduziu a imponente novidade de circular de copo na mão num beberete (pausa dramática) ao cair da tarde de um domingo, algo invulgar à época.

Um receção doméstica para 50 convidados cheia de estilo, promovida pela mulher que adorava cavalos e festas e que nesse primaveril dia de abril decidiu inovar. E que facilmente se punha a jeito para enfurecer as mentes mais conservadoras, para gáudio dos tabloides. Não é por acaso que o Feast Podcast descreve o então crescendo da moda das cocktail parties como “uma via rápida para o inferno”.

Aveia, natas e alho francês. Nos cocktails da Toca da Raposa vale tudo

O cenário proporcionado por Walsh terá emergido “do encontro de duas tendências distintas na sociedade americana. Com a moderação a ganhar poder no final do século XIX, a existência de espaços públicos para beber encolheu consideravelmente, redirecionando os hábitos de bebida para o contexto doméstico. Ao mesmo tempo, a sociedade começou a libertar-se das suas convenções vitorianas”, aponta o Atlas Obscura em 2017, sublinhando as raízes feministas desse beberete domingueiro. É que o período entre 1880 e 1920 trouxera ainda uma nova mulher, desembaraçada de alguns constrangimentos e com tempo extra permitido pelo advento dos fornos a gás e ferros elétricos.

O diário do século XX escreve-se também com uma acesa segregação racial em estados como o do Missouri e sem uma peculiar exceção à regra — para o seu cocktail em casa, Clara Bell ter-se-á inspirado no compêndio publicado em 1917 “The Ideal Bartender”, da autoria de Tom Bulloc, famoso barman, frequente no St. Louis Country Club, e primeiro afro-americano a assinar o seu livro com receitas de cocktails. Contas feitas, o seu a seu dono. “Foram os americanos que realmente lançaram a moda mas o pai apresentou-a a Inglaterra”, admitia em 2011, ao The Guardian, Peter Waugh, o filho de Alec.

Proibições, manuais de cocktails e festas para a posteridade

Até final de 1933, a Lei Seca redefiniu os consumos e a dimensão do escândalo nos EUA. Com o fim da proibição, a cultura americana recuperou a sua ligação ao álcool em geral e aos cocktails em particular, com uma abundância de novidades impulsionadas pela cultura tiki. As influências saídas da passagem dos soldados norte-americanos pelo pacífico sul seriam sentidas em força no final da década de 40, quando se multiplicaram os guias e livros de conselhos feitos por medida para todos os anfitriões. Pelo caminho, o continente europeu seguia as pisadas de Alec Waugh e a cultura dos cocktails manifestava-se ainda nos anos 30 em edições como o Cocktail Book do Hotel Savoy, que rendeu enorme popularidade a uma série de receitas. Junte-se uma boa pitada de star system e celebridades disponíveis para a festa e temos a fórmula do glamour dos anos que se seguiriam, de ambos os lados do Atlântico.

Peggy Guggenheim na sua casa em Veneza, Itália, cenário de várias festas lendárias. A cidade é a morada do acervo de arte moderna The Peggy Guggenheim Collection @ Getty Images

Para a história da primeira metade do século XX e mais além passam receções como as oferecidas pela socialite, colecionadora de arte e figura boémia Peggy Guggenheim (1898-1979) na sua casa em Veneza, durante o Festival de Cinema, no final dos anos 50. Ou da também norte-americana, filantropa e imperatriz dos negócios da beleza Helena Rubinstein (1872-1965), outra figura incontornável, para quem os cocktails estavam longe de ser uma raridade numa agenda bastante preenchida. “Os dias da madame eram preenchidos com trabalho e mais trabalho, e no final do dia com mais compromissos — uma cocktail party, um jantar com a alta sociedade ou uma gala beneficente”, lê-se na biografia “Helena Rubinstein: The Woman who Invented Beauty”.

A arte de bem receber em pleno século XXI

Chegados a 2019, quase com um pé em 2020, e com a temporada de festas à porta, deverá o efeito surpresa de um presente debaixo da árvore estender-se a um cocktail? Quão refinado é surpreender as visitas com uma dose de imprevisto? Bom, um dia não são dias. Se um local bonito, bem aromatizado — “spray de ambiente de marca requintada, sempre!” — com velas e música não devem faltar, aprimore o momento com um elemento inesperado. “As pessoas gostam de ter oportunidade de conviver com alguém fora do seu universo”, nota Carlos Pissarra, organizador de eventos. Habituado a trabalhar com clientes privados e empresas, destaca ainda a eventual “cereja em cima do bolo” se o seu círculo de amigos for especialmente inclinado à very important people: “Surpreenda com uma figura pública (amiga dos anfitriões, mas não conhecida de todas)”, sugere. Segundo Carlos, o lastro de surpresa pode e deve estender-se à mesa e, ponto assente, se os copos são a grande atração, que nunca se sintam diminuídos.

Dar de comer o que não se espera e também o que não é habitual na tribo dominante entre os convidados. Também não deve faltar bebida e sempre com back up de muito gelo, para estar tudo muito frio. Ah! E a temperatura do ambiente, muito importante! Espaços gelados no inverno e muito quentes no verão, estragam qualquer ambiente.”

Ainda no capítulo dos comes e bebes, descomplicar é a palavra de ordem. Simplicidade, sim, mas sem comprometer a originalidade do sabor e da apresentação, aconselha o organizador. “A comida deve ser elegante e fácil de comer – aperitivos de uma só dentada, sem molhos que pinguem e sem formatos complicados que embaracem o convidado no ato de comer”.

Uma cocktail party em 1945 @ Getty Images

Antes que pense que há soluções populares descartadas, segue uma palavra de gratidão para um infalível: “Só há um clássico que faz vibrar todas as faixas etárias e todas as classes sociais: o croquete de carne. Que, obviamente, deve ser pequeno. E em abundância, porque nada pior do que acabarem os croquetes logo na primeira hora…”. Se optar por servir um “muito simpático” prato quente, o segredo, refere Carlos, é só ter pratos de sobremesa e apenas garfos, para evitar o tradicional cair da faca no chão — a razão é oferecer pratos que não tenham que ser cortados. Mas e que coordenadas seguir no que toca às bebidas?

O espumante ou o champanhe resolvem quase tudo, embora tenham que estar muito frios. Podem oferecer-se vinhos branco e/ou rosé (este está na moda e a emergir) e é sempre bom ter umas garrafas de tinto, embora se gaste muito menos num cocktail. Claro que o gim ou a caipirinha/caipiroska, fazem as delícias de muitos convidados. Mas para estas bebidas há que contratar alguém para ajudar ou ter uma mesa de apoio onde está tudo e os convidados servem-se. Nunca ofereça muitas opções de gim e de temperos, apenas uma marca e fique pelo limão. Em casa não é elegante fazer um cocktail com muitas marcas de bebidas!”

Um “agradável e animador ruído de fundo” (leia-se boa música) é indispensável para criar o ambiente ideal e não se esqueça que neste capítulo “não há milagres” quando queremos garantir que tudo esteja a preceito quando os convidados chegarem — a regra é deixar mesmo tudo preparado para esse grande momento, devendo ainda “haver arte e sabedoria na mistura das pessoas”. Já agora, atenção às horas se estiver na pele de convidado. “Os convidados não devem chegar com muito atraso em relação à hora do convite. Mas nunca chegar antes da hora, nem ao minuto do convite. Dar ali os 15 minutos de tolerância“. Pensou na comida, pensou na bebida, até na decoração da casa. Que grau de sofisticação deve contagiar os looks de quem recebe e quem é convidado? Sim, temos que falar de dress code, a azeitona que faltava neste cocktail.

Em casa, os anfitriões gostam que os convidados se arranjem e cheguem com aspeto de quem se preocupou e cuidou do visual para responder ao convite. Os donos da casa não devem exagerar no modo como se apresentam, mas também não podem dececionar os convidados e recebê-los sem algum toque de elegância extraordinário. A cultura europeia pede sempre um investimento quando se convida e quando se é convidado”.

Finalmente, quando a festa se aproximar a passos largos do fim, ou pelo menos do fim que o dono da casa deseja, arme-se de toda a diplomacia do mundo se for necessário lidar com os mais resistentes, e convidá-los gentilmente a sair. “Há dois truques: subtilmente o anfitrião começa a arrumar cadeiras, a arrumar a casa. E para de encher o copo dos convidados. Resulta sempre!”

Quebrar o gelo (de forma figurativa e literalmente). Porque não falar de neurociência?

Voilá, está tudo pronto. Esteja na pele de anfitrião ou convidado, só falta unir uns dedos de conversa à fingerfood. Saber quebrar o gelo é uma arte, e não nos referimos apenas à destreza com que aborda os seus pares num salão onde os motores ainda estão a aquecer e o efeito do álcool demorará um pouco mais a espevitar as línguas. Depois de disciplinar a água gelada como convém, foque-se no assunto. Se não sabia, fica a saber que o chamado cocktail party effect dá um belíssimo tema de conversa se tudo o resto falhar. Ou pelo menos, vale a pena esmerar-se nesta capacidade, já que lhe permite estar atento a uma conversa enquanto, em simultâneo, consegue acompanhar outras conversas paralelas. Num ápice, estamos em pleno território da neurociência.

Mas para algo mais acessível a todos os convivas, fique-se pela etiqueta-chave para uma troca de impressões que não provoque estragos. Fazer perguntas (para não falar apenas de si), evitar temas sensíveis e a clássica pergunta de arranque “o que é que faz na vida?” são sempre conselhos prudentes. Quanto a tudo o resto, incluindo o álcool, é para consumir com moderação.