Diríamos que se sente alguma fome de duração nesta época onde tudo corre para a obsolescência e o discurso que sustenta a moda passou a não se diferenciar de qualquer outra mercadoria que se deve comprar, publicitar nas redes sociais e arrumar nesse “não lugar” que se tornaram as nossas casas. Diríamos também que nunca a criação do Dr. Martens apareceu nos pés dos caminhantes das cidades sem que isso representasse uma atitude de engajamento social ou artístico, um prenúncio ou um sintoma de mal-estar. A sua história,  que já ultrapassou as sete décadas, escreve-se mais pelas ruturas identitárias, sociais, económicas e culturais do que pelo seu volume de vendas numa folha de Excel. Aliás o sucesso mercantil das botas Dr. Martens acaba por estar sempre ligado a momentos de ressaca ou crise económica. Northampton, Manchester, Berlim, Londres, Seattle, industria pesada, movimento Punk, Skinheads, Hooligans, Pop, Gótico, Metal, Grunge… nostalgia.

Eis a pergunta que se impõe: será que este regresso das Dr. Martens, no apogeu das celebridades de instagram e da moda como objeto e não como cultura, marca a sua morte melancólica aos pés do mainstream? Como resistirá a sua história de violência e sangue, mas também de protesto, rebeldia e afirmação quando combinada com um teddy coat ou uma carteira com um logótipo de luxo ostentado sem pudor? Quem e para quem são hoje as velhas “Docs” que palmilharam as ruas da adolescência de tantos de nós, ao som dos  poemas urbano-depressivos dos Smiths, dos Cure, dos Nirvana?

A marca e o seu selo Airwair calçaram a Inglaterra proletária dos anos 60 e 70: Imagem cedida pela marca

Apesar de associadas à mais pura cultura britânica as “Doc” ou “DMs” nasceram na Alemanha do pós-guerra onde o engenho do Dr. Klaus Maertens, de 25 anos e de uma amigo engenheiro, criaram uma botas feitas com material barato e confortáveis para usar sobre aquelas cidades arruinadas. A ideia foi recuperar a borracha da indústria aeronáutica mas introduzindo-lhe uma almofada de ar que tornasse este material mais amigável. O objeto revelou-se um sucesso sobretudo entre as mulheres com mais de 40 anos (velhinhas, portanto) e chegou a haver em Munique uma fábrica que respondia a toda a Alemanha Ocidental. Em 1960, uma empresa inglesa de nome Griggs, que já produzia calçado para a indústria pesada, reconhece o potencial das botas e compra a patente. A história viria a mostrar que também aqui os ingleses venceram os alemães: é que apenas com um ajuste no salto, uma linha amarela para reforçar a ligação das solas de borracha ao couro da bota e um ligeiro inglesamento do nome, que passou a ser “Dr.Martens” conseguiram criar um produto que perduraria décadas fora e se tornaria um objeto de culto, um verdadeiro totem na história da moda do século XX.

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Destinadas às classes trabalhadoras, desde carteiros a mineiros, as Dr.Martens custavam 2 libras (hoje custam cerca de 200 libras/euros) e eram usadas por gente de todas as idades, um objeto que se tornaria um símbolo das classes trabalhadoras em geral e da região do norte de Inglaterra em particular. Produzidas em Northampton, o seu primeiro (e mais ilustre) modelo surge no dia 1 de Abril de 1960 e ficará conhecido como o 1460. No ano seguinte aparece a versão Dr. Martens sapato, exatamente no mesmo dia; ficará batizada como modelo 1461. Durante as primeiras décadas fabricavam-se apenas em duas cores: preto e vermelho-cereja.

Os saltos míticos do vocalista dos The Who que fizeram das Docs um statment. Imagem cedida pela marca.

E se em Londres se swingava em minissaia e fatos justos, noutras cidades saíam das sombras do desespero, da pobreza e do nacionalismo, novas sonoridades, que fariam os Beatles parecerem meninos do coro. Os skinheads invadiam as ruas com a sua violência e calçavam Dr.Martens novas em folha que deveriam ser “batizadas com sangue”. As botas das classes trabalhadoras eram ostentadas com calças jeans dobradas e t-shirts com a bandeira da Union Jack. Em 1967, Peter Townshend, dos The Who voa sobre o palco com umas Doc nos pés e preconiza novos tempos e novas lutas identitárias: chegava o Punk Rock e com ele as botas saem definitivamente do domínio das classes trabalhadoras para a juventude urbana, descontente e nihilista. De repente todos calçavam Dr. Martens, os Sex Pistols, os Stranglers, a Sioux, Viviene Westwood e, até mesmo, trabalhistas como o ministro Tony Benn ou o papa João Paulo II.

No final da década de 70, as botas de robustas solas de borracha cosidas a fio amarelo eram calçadas da direita nacionalista à esquerda trabalhista com passagem pelo Vaticano. Uma década de crise económica e social profunda que atingia outros cantos da Europa e a Berlim deprimida que Wim Wenders e Peter Handke cantarão em As Asas do Desejo, também calça DMs e veste negro integral. Os anos 80 hão-de ser dos yuppies ricos mas também de um gótico puritano desenhado pelo criador japonês Yoji Yamamoto, o primeiro a integrar as Docs na sua estética. Cruzando o minimalismo oriental com o gótico: linhas depuradas, duras, cores neutras, colidem com a euforia kitsch da Pop britânica. A linha entre uns e outros era clara mas tanto Nick Cave como Madonna calçavam DMs.

A era do videoclip há-de espalhar a palavra do senhor Martens por todas as televisões ocidentais. As bandas de Heavy Metal recuperam a herança mais pesada das botas que entretanto foram sendo substituídas por outros modelos menos agressivos. A marca começa a fazer botas de cano mais curto, em tons camel, negro mate e mais tarde negro envernizado. No final dos anos 70 surgem os modelos 2976 (chelsea), o Church, Monkey, o Polley, e no final dos anos 80 lançam o modelo 3989, Brogue Shoe.

Nos anos 80 o deputado trabalhista e ex-ministro, Tony Benn, não só abdicou do seu títulos aristocrático como calçava Dr. Martens para evocar a sua proximidade com a classe trabalhadora. Imagem cedida pela marca

Nos anos 90, Seattle era uma das muitas cidades americanas a braços com uma crise económica, desertificação, fecho de fábricas, desemprego. E é ali, das garagens de uma classe média arruinada que sairá o tom que acordará a alvorada do fim do milénio: o grunge. A sua poética melancólica ressacava a industria do entretenimento e com os seus despojos fazia uma coisa nova. O seu nihilismo era mais feroz que o dos Smiths, dos Cure ou dos Stone Roses, desta vez nem o corpo sobrava para envergar roupas caras. Era tudo para abater, era tudo sujo e sem objetivo. “A mosquito, my libido “, cantava Cobain nos seus jeans rasgados, cardigans velhos, botas Cat cambadas ( a versão americana das botas de trabalho que se tornaram um produto caro) ou as Doc. Martens gastas pelo uso. Foi nesses anos 90 que começaram a ser vendidas em lojas que não apenas a lisboeta Porfírios.

De Seattle para o mundo a marca teve uma expansão sem precedentes a reboque do mercado americano e haveria de chegar (claro) a Hollywood, com atrizes como Winona Ryder, Gwyneth Paltrow, e Cameron Dias a ostentarem um par inevitavelmente conjugado com umas meias brancas, mas também atores como Johnny Depp ou Brad Pitt desfilavam as suas. Na primavera de 1993, o jovem designer Marc Jacobs lê o zeitgeist e faz uma coleção para a marca Perry Ellis, na qual coloca literalmente o grunge das ruas na passerelle: camisas de flanela, gorros, camisolas bretãs e Dr. Martens. Jacobs é despedido da marca mas triunfa como criador. Em 2018, para comemorar os 25 anos sobre esse desfile icónico o designer e a Dr. Martens lançaram um modelo comemorativo das botas, cuja personalidade voltaria a marchar sobre as cinzas do tempo.

O icónico modelo 1460, em versão preto mate. Um clássico para os próximos 100 anos. Imagem cedida pela marca

   

No entanto o novo milénio traria a maior crise à marca que em 2003 esteve perto da falência. As fábricas saem do Reino Unido e deslocalizam-se para a China e Tailândia deixando um rasto de milhares de desempregados. Atualmente só 1% da produção é ainda feita em Inglaterra mas naturalmente se pode ainda ir ao bairro londrino de Camden comprar um par numa das dezenas de modelos de todas as cores e materiais possível. Dos iridiscentes azul sereia e cor de rosa ao clássico modelo preto 1460 há um universo que parece ter apagado todas a sua história de violência.

Outono de 2019. Talvez o regresso das Dr. Martens agora em versão 2.0 nas redes sociais, como se fossem apenas mais um item de moda e não um símbolo, seja apenas um epifenómeno, ou talvez não. Sabemos que Inglaterra está a braços com uma crise política e social profunda, daquelas que acordam para pesadelos, que as gerações mais jovens não têm hoje 200 euros para poder ter umas Dr.Martens e que talvez a sua glória como porta-voz de gerações seja hoje coisa do passado. Por outro lado, a crise ecológica e a nova consciência ambiental impõem uma nova mundividência, onde a indústria da moda não pode continuar a ser a indústria do desperdício. E aqui a robustez, a durabilidade e a versatilidade das Doc, parece ser a antítese deste tempo fragmentado e volatilizado em mil experiências sem consequência. Talvez tenha chegado ao fim o tempo do flaneur a arrastar pelas cidades a sua incapacidade de fazer compromissos com a época. Talvez estejamos no começo de novas lutas e precisemos de pisar o chão com umas botas que pisam o instante inconsequente para chegarem a um mundo onde os objetos deixem de ser mercadorias e recuperem a sua aura e o seu feitiço, a sua “duração”, como a descreveu o poeta Peter Handke.