Ouvia-se Mozart no vaivém espacial Discovery. As luzes estavam apagadas e, pela janela, via-se a Terra. O astronauta Scott Kelly, piloto da missão, estava a bordo do veículo espacial para fazer algumas reparações no telescópio Hubble. Em cima da mesa, codorniz com molho de vinho tinto, foie gras e bombons com licor. Curtis L. Brown, o comandante, tirou do bolso uma folha de papel, tossiu e disse: “A história do Natal recorda-nos que, durante milénios, pessoas de muitas fés e culturas olharam para o céu e estudaram as estrelas e os planetas, na sua busca por um conhecimento mais profundo da vida”. Estávamos em 1999. Cumpria-se o primeiro e único Natal celebrado no Discovery.

Não era o primeiro Natal que a humanidade passava fora Terra. Uns anos antes, durante a missão Apollo 8, a tripulação passou o 24 de dezembro de 1968 a ler o Livro de Génesis enquanto orbitava a Lua. Frank Borman, Jim Lovell e Bill Anders tornaram-se não só os primeiros humanos a orbitar a Lua, como os primeiros a passar o Natal fora do planeta. Mas, para eles, não houve nada de mágico nesse dia: “Isto foi nos primeiros dias da tecnologia das casas de banho espaciais. Não funcionou como planeado, houve um acidente e a cápsula era um local bastante perfumado”, lembrou a antropóloga espacial Alice Gorman numa entrevista à australiana. ABC Radio Host.

O segundo Natal no espaço, um pouco mais glamoroso, aconteceu em 1973, quando os Estados Unidos tinham em órbita uma estação espacial chamada Skylab. Era a quarta missão ao laboratório. Ninguém se lembrou de levar decoração natalícia, por isso a tripulação — constituída por Gerald Carr, William Pogue e Edward Gibson — construíram uma árvore de Natal com latas vazias de comida. Vinte e dois anos mais tarde, o Natal foi na estação espacial russa Mir, com John Blaha, Valery Korzun e Alexander Kaleri a bordo — mas com os russos a celebrar apenas no início de janeiro, seguindo a tradição da igreja ortodoxa, que se baseia no calendário juliano.

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Até ali, o Natal espacial tinha sempre um cunho religioso. Em 1999, o discurso já era outro: “Esperamos e confiamos que as lições que o universo tem para nos dar possam ir ao encontro do desejo que sabemos existir em todos os corações humanos — o desejo de paz na Terra e boa vontade entre toda a família humana”, disse Curt, desviando-se da possibilidade de ferir suscetibilidades.

A árvore de Natal de latas construída pelos astronautas do Skylab em 1973. Créditos: NASA

Por algum motivo, não resultou. Os astronautas cruzaram olhares. Fez-se uma “longa e desconfortável” pausa, recordou Scott Kelly no livro Endurance: “Se não houvesse outra razão, o discurso de Curt teria, pelo menos, sido notável por ter sabido evitar qualquer referência religiosa. Foi um momento bonito, desfrutado tanto por cristãos como por não-cristãos”. Ainda assim, a única resposta ao discurso de Curt foi estática.

“Habitualmente, o capcom [o astronauta em Terra que faz a comunicação com os veículos espaciais] agradeceria ao comandante pelo seu excelente discurso e reiteraria que o espírito da humanidade estava bem presente no programa do vaivém ou algo desse género“, explica o piloto. Não aconteceu nada disso. Uns segundos depois, em terra, Steve Robinson respondeu apenas: “Entendido. O piloto deve avançar para operação de compactador”.

Voltaram todos ao trabalho. Só mais tarde é que Scott Kelly e outro astronauta, Billy Bob, aqueceram a comida para celebrar o Natal no cockpit: “Contemplávamos a maravilhosa Terra abaixo de nós e comíamos aquele prato fantástico, refletindo sobre a nossa sorte em podermos celebrar o Natal como ninguém o fizera ainda no vaivém”. Lá em baixo, um grupo ateu preparava-se para processar a NASA por causa do discurso de Curt, que, para eles, violava a separação entre a Igreja e o Estado prevista na Primeira Emenda da lei norte-americana.

Logo no ano seguinte celebrou-se o primeiro Natal a bordo da Estação Espacial Internacional, constantemente habitado desde 2000. Foi uma “celebração calma”, conta a NASA numa página dedicada à vida no laboratório: “O astronauta Bill Shepherd e os cosmonautas Yuri Gidzenko e Sergei Krikalev passaram um tranquilo dia de Natal a abrir presentes e a conversar com as suas famílias”.

Foi na Expedition One, a primeira equipa de astronautas a habitar a Estação Espacial Internacional. Desde então que a forma como se vive o Natal no espaço mudou, explicou a NASA num e-mail enviado ao Observador. Cada membro tem direito a levar para o espaço uma “caixa bónus” com objetos que considere importantes. Muitos levam decoração natalícia, como botas de Natal, um pinheiro de plástico, bolas para o enfeitar e um gorro do Pai Natal. Além disso, cada astronauta pode pedir pratos típicos da sua cultura para saborear o Natal. Normalmente há peru defumado, bolos tradicionais, frutos cristalizados e puré de batata.

A Estação Espacial Internacional é habitada por astronautas de várias culturas e religiões. Os norte-americanos e europeus costumam celebrar o Natal entre 24 e 25 de dezembro; mas os russos normalmente festejam apenas na época do Dia de Reis. A regra, explica a NASA, é o “respeito”: “Cada astronauta celebra conforme a fé que tem e os costumes que segue na Terra. E todos respeitam as crenças uns dos outros. É esse o espírito das missões da Estação Espacial”.

É assim no Natal e é assim na Passagem do Ano. Conforme explica a NASA, os astronautas a bordo da Estação Espacial Internacional seguem o Greenwich Mean Time para desenvolverem as atividades no espaço — até mesmo nos momentos em que podem folgar das centenas de experiências científicas que fazem a bordo. Ou seja, se está em Portugal, o mais provável é que, enquanto estiver a saborear a ceia de Natal a 24 de dezembro, alguns dos astronautas que orbitam a Terra 408 quilómetros acima das nossas cabeças estejam exatamente a fazer o mesmo.