Está a chover. Um homem de gabardine amarela trata da comida do cão, ao pé da sua casa de pedra. Estamos em Alva, ou, se quiser, na vila do Avô, concelho de Oliveira do Hospital, rodeados por montanhas, mato, ovelhas, floresta e muito pouca gente. Sente-se a solidão. O homem da gabardine amarela é Henrique Bonacho, o protagonista desta cena e da primeira longa metragem de Ico Costa, “Alva”, que, apesar de ser português, só foi terminado com apoio francês e argentino. Filmado em 16 mm (produzido pela Terratreme e estreado em Roterdão), esta é a história de um solitário que, ao estar afastado dos filhos — mas também isolado da sociedade –, decide cometer um crime e refugiar-se na floresta.

À primeira vista, a narrativa deste filme tem traços semelhantes às de histórias reais, casos como o de Manuel Palito, que matou a ex-sogra, a tia e feriu a ex-mulher e a filha de ambos, e que, por consequência, andou fugido às autoridades; ou o de Pedro Dias, autor de três homicídios que protagonizou das maiores perseguições polícia-criminoso (28 dias) em Portugal. Mas é só uma mera semelhança. A garantia é de Ico Costa, que quis fazer um “mash up” de várias histórias que foi recolhendo naquela vila, um sítio que, por tanto lá regressar, acabou por despertar um certo fascínio em perceber “a origem de certos problemas sociais por detrás de crimes que saem na comunicação social”. Aqui não interessa tanto o crime ou o criminoso, mas a realidade ficcionada, despegada de emoções ou dramatismos, desta gente que faz diariamente capas de jornais.

A vila do Avô acabou por se tornar também a casa de Ico Costa, e que o levou a realizar duas curtas, “Quatro Horas Descalço” e “Antero”, que tocam também nesta temática. Três semanas de rodagem para terminar o “Alva”, num sítio que, depois dos incêndios de 2017, já nem sequer é o mesmo. “Tudo o que vemos no filme ardeu, menos a cidade. Tudo o que é mato, ardeu”, comenta o realizador português. Só que o tema também não é esse. É o Henrique. Ele, os seus silêncios, respirações e ações.

[o trailer de Alva:]

É que o silêncio, ou se quiser, a ausência quase completa de diálogo nesta longa, transforma-se numa peça fundamental para percebermos o homem que vamos acompanhando, a sua viagem interior que começa no campo, isolado, quase derrotado, e termina na cidade, em paz. “A personagem está em todos os planos, não há diálogos, eu queria que o espectador entrasse na cabeça do Henrique, cheirando, comendo e ouvindo o que ele ouvia. Quase sentindo o que ele sente”, afirma. É no “quase” que o realizador joga, pois em boa parte do filme ficamos com a sensação de que estamos perante um documentário. Será Henrique real? Terá ele cometido mesmo um crime? A intriga aqui acaba por cativar. E esse é, sem dúvida, o ponto mais forte desta primeira longa metragem.

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Essa sensação de cumplicidade é feita ora em campo, ora fora de campo, através do sons da natureza. Mas também de um trabalho muito próximo entre Ico e Henrique, onde houve espaço para muito improviso, até por se tratar de uma ator não profissional, um género de ator predileto para o realizador nas suas obras. “Conheci o Henrique quando participou no filme da Susana Nobre “Provas, Exorcismos” [2015], em que eu fui assistente de realização. Fiquei logo fascinado por ele, o olhar forte, a forma de se movimentar, os ritmos. Via-se que era uma pessoa que tinha passado por coisas muito fortes, com um passado obscuro, que demorei tempo a entender”.

Só que a decisão em escolhê-lo não foi instantânea, quando Ico Costa percebeu que o filme exigia “um ator brilhante”, ou seja, um ator profissional. Contudo, bastaram alguns minutos de casting para que a decisão em escolher Henrique fosse tomada. “Percebi logo que era a pessoa certa, que se adequava a forma mais documental que queríamos filmar. Depois a equipa adaptou-se toda a ele. Só que o Henrique nunca teve a noção toda do filme, não sabia o que ia fazer a cada dia, eu usava jogos, punha-o a correr, metia-o o confuso, e isso levou-o a interiorizar a personagem”, confessa.

Não é, portanto, um filme sobre o ruído ligado a este tipo de crimes: não há grandes perseguições policiais, nem aberturas de telejornais infindáveis. Há o Henrique e nós, cúmplices de um crime, parceiros de uma viagem montanhosa, que culmina no lugar mais sociável de todos, um café. E talvez, acima de tudo, uma grande necessidade em mostrar uma imparcialidade muito crua, que alguns poderão achar impossível.

Até no fim. Vemos Henrique sereno, sentado num café a beber um sumo, vestido com um fato — talvez de casamento, relembrando um caso que o realizador anotou, mas que não quis explicar. “Há uma aceitação, uma ideia de que não valia a pena dar-se como vencido, e ao mesmo tempo uma certa paz em todo este processo”. Ficamos com a penitência de um homem só. Isso, e o seu silêncio. Nem com Deus se quis resolver. Mas não é preciso mais diálogo, o olhar desta personagem já diz muito.

“Alva” passa no Cinema City em Lisboa e Leiria, no Cinema Trindade no Porto e no Alma Shopping em Coimbra