Nos Óscares deste ano, havia dois filmes sobre a guerra na Síria entre os nomeados para Melhor Documentário de Longa-Metragem. “The Cave”, de Feras Fayyad, que segue um grupo de médicas sírias que improvisaram um hospital subterrâneo na cidade de Ghouta, perto de Damasco; e “Para Sama”, de Waad Al-Kateab e Edward Watts, onde aquela, uma jovem universitária casada com Hamza A-Katead, um médico de Alepo, registou, com a sua câmara digital, cinco anos da divisão e do cerco de parte da cidade, dos combates e da vida quotidiana da sua família, dos amigos e vizinhos, e do hospital montado pelo marido e alguns colegas e voluntários. Juntamente com “A Syrian Love Story’, de Sean McAllister, sobre um casal separado pelo conflito, estes documentários formam uma trilogia sobre a situação na Síria, na perspetiva de quem não usa uniforme e está a arcar com as consequências da guerra.

[Veja o “trailer” de “Para Sama”:]

“Para Sama” destaca-se deste trio, por não ter sido feito por um realizador profissional, mas sim por quem o viveu diretamente. Entre 2011, data dos levantamentos contra o Presidente Assad em Alepo e Damasco, e 2106, quando teve finalmente que abandonar Alepo com a família e refugiar-se na Turquia (vivem hoje em Inglaterra), Waad Al-Kateab (que teve depois a ajuda, na montagem, do jornalista e documentarista inglês Edward Watts, da estação Channel 4) nunca parou de filmar. Na origem dos 96 minutos deste documentário, estão as mais de 500 horas de imagens captadas por ela com a sua câmara digital, que serviram também para alimentar uma rubrica de reportagem daquele canal de televisão inglês sobre o conflito na Síria, e particularmente em Alepo.

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[Veja uma entrevista com Waad e Hamza Al-Kateeb, e Edward Watts:]

Dedicado à filha Sama, nascida durante o cerco, “Para Sama” é um testemunho único de uma rebelião nacional transformada em conflito internacional pela intervenção de vários países e grupos estrangeiros apoiando o governo ou os revoltosos, contada do ponto de vista dos civis que o sofrem diariamente. E ao mesmo tempo, a crónica de uma ativista corajosa (ao ponto de roçar a inconsciência – a certa altura, a família tem a oportunidade de ficar com os pais de Hamza, que foram visitar à Turquia. Mas regressam a Alepo, sob risco de vida, trazendo a bebé em vez de a deixarem em segurança com os avós), esposa dedicada e mãe extremosa, submetida às circunstâncias de um conflito urbano sem quartel; e ainda uma carta de amor, e de explicação de tudo o que fez, e porque o fez, dirigida à filha.

[Veja a entrega do BAFTA de Melhor Documentário:]

Urgente, cru e dilacerante ao ponto do insuportável, porque Waad não recua perante filmar – mas nunca com voyeurismo  ou como espectáculo de atrocidades – a devastação física, emocional e psicológica causada pelos bombardeamentos e tiroteios, em especial sobre as crianças e as mulheres, “Para Sama” é um “home movie” de guerra, aflitivo e tremendo, mas também caloroso e esperançoso. Às imagens dos combates nas ruas, dos horrores no hospital (o do marido de Waad foi o último a ficar a funcionar na cidade antes desta cair) e da dor de quem perdeu familiares ou amigos, juntam-se as dos momentos de intimidade da família, da preocupação constante da jovem com o marido e com Sama, do convívio com os amigos e da tentativa de manter alguma normalidade e humanidade quotidiana, enquanto se ouvem cair as bombas russas na rua ao lado, as crianças brincam nas carcaças dos automóveis destruídos e as mulheres cozinham a única coisa que há para comer: arroz bichado.

[Veja uma sequência do filme:]

A  sequência da mulher grávida de nove meses gravemente atingida num bombardeamento e que é trazida para o hospital, acabando os médicos por conseguirem salvar mãe e bebé, sintetiza esta combinação do atroz e do otimista, de desespero e de alento, que define “Para Sama”. Tal como aquela em que o marido de Waad tenta limpar com uma mangueira as plantas e as flores do jardim, da terra e dos destroços que as cobriram após a explosão de um morteiro; ou ainda aquela outra em que o marido da vizinha lhe oferece um dióspiro como se fosse uma joia rara, e esta se comove até às lágrimas perante a fruta: “Julguei que só voltava a ver um dióspiro quando a guerra acabasse!”, diz, sorrindo e chorando ao mesmo tempo.

A única coisa que “Para Sama” não dá ao espectador é o contexto global dos acontecimentos, um panorama claro e explicativo da guerra na Síria, da situação em Alepo e do que está em jogo na região. Entre aqueles que combatem o regime sírio estão grupos jihadistas e forças do Estado Islâmico, que controlavam parte de Alepo com indescritível brutalidade, e que em “Para Sama” são referidos muito de raspão ou apenas mencionados nas legendas finais. O seu triunfo significaria a transformação do país em mais um regime de terror e obscurantismo fundamentalista, ou a sua queda num caos semelhante ao da Líbia. Sendo também, inevitavelmente, um filme político, “Para Sama” fica como um testemunho humano perturbante e comovente, feito com mais emoção que informação.