José Gomes Ferreira foi um dos primeiros jornalistas a escrever sobre os “piolhos” de Lisboa, “os cinemas dos bairros afastados”, como lhes chamou na reportagem publicada na revista “Kino”, em 1931. Os “piolhos” eram as salas populares da capital, com bilhetes baratos, cadeiras de pau (ou “sumapau”, como se dizia então) e nem sempre com as melhores condições de projecção e higiene (daí a designação “piolho”). Exibiam filmes em reposição, por  vezes em sessões duplas ou contínuas, e “serials”, ou fitas em partes, caso de “Flash Gordon” “Tom Mix” ou “Dick Tracy”. Tudo para gáudio de um público entusiasta e barulhento, que esgotava sessões que mais pareciam “o fim do mundo”, como descrevia a Gomes Ferreira o porteiro do Eden Cinema, vulgo o Piolho de Alcântara, inaugurado em 1921.

[Veja imagens do “serial” “Flash Gordon”:]

Mas existiam outros. O primeiro “piolho” foi o Salão Lisboa, na Rua da Mouraria, que abriu em 1915 e só tinha sessões às quintas-feiras, sábados e domingos. Era proibido entrar sem sapatos, pelo que os miúdos do bairro arranjaram uma manha. Um que tinha sapatos comprava um bilhete e entrava. Depois, subia ao primeiro andar do cinema e atirava os sapatos pela janela a outro, e assim sucessivamente, e o grupo todo acabava por entrar (embora muitas vezes fossem a seguir todos postos no olho da rua – menos o privilegiado dono dos sapatos – pelos porteiros mais vigilantes).

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[Veja imagens do Salão Lisboa:]

Havia também o Cinema Popular, ou Piolho de Marvila, aberto em 1935 e no qual se vendiam bilhetes para o chão. Os menos abonados, que não tinham dinheiro suficiente para um lugar sentado, compravam, por um punhado de tostões, um “bilhete de chão” e ali viam o filme. Outros “piolhos” alfacinhas eram o Cine Oriente (1931), na Penha de França, ou o Max (1929), no Alto do Pina, assim baptizado em homenagem ao actor cómico francês Max Linder (conhecido em Portugal como Cara Linda). O Max era considerado o melhor dos “piolhos” lisboetas, estreando mesmo filmes de quando em quando (o preço dos bilhetes subia nessas ocasiões).

Um dos “piolhos” mais pobres, precários e castiços da capital abriu há 60 anos. Era o Cine Texas, nas Galinheiras. Funcionava ao fim-de-semana num barracão de zinco com condições técnicas, de higiene e de conforto mínimas, mas esgotava sessões como todos os outros. Os filmes eram anunciados por um autofalante montado numa velha carrinha Bedford enfeitada com os respectivos cartazes, que percorria a zona. Os bilhetes mais baratos eram os da geral, feita de tábuas corridas mesmo por baixo do ecrã, dando cabo do pescoço de quem não tinha dinheiro para mais. Diz quem o frequentou, que no Inverno o barulho da chuva nas chapas de zinco era ensurdecedor. Um dos maiores sucessos do Cine Texas, em “reprise”, foi “Trinitá-Cowboy Insolente”.

Nos intervalos (havia dois, como nos cinemas finos), os espectadores iam a correr instalar-se a jogar matraquilhos numa barraca de jogos montada ao lado do Cine Texas, até uma corneta tocada pelo dono da sala avisar que a sessão ia recomeçar. Às vezes, quando a fita se partia, mas não só (também acontecia quando um espectador que sabia um filme de cor de o ver tantas vezes, começava a reproduzir alto os diálogos entre os actores, ou alguém lia, também alto demais, as legendas para os familiares ou os amigos analfabetos), havia pancadaria, que começava invariavelmente nos lugares mais baratos, os da geral (quatro escudos) e daí subia até aos mais caros, do balcão (seis escudos), após passar pela plateia (cinco escudos).

Os desacatos assumiam por vezes tais proporções, que era preciso chamar a polícia, que entrava na sala a distribuir cacetada a torto e a direito e (embora raramente) fazia uma ou outra prisão, enquanto o proprietário, aos gritos, ameaçava cancelar a sessão se a confusão não acabasse. Estes arraiais de lenha dignos de um filme de “cowboys” como os que o cinema exibia de vez em quando, e aos quais o seu nome fazia jus, contrastavam fortemente com as frases que decoravam as periclitantes paredes do Cine Texas, e que apelavam à boa educação em sociedade e ao comportamento digno no desporto.

O Cine Texas fez as delícias cinéfilas da população daquela banda de Lisboa durante pouco mais de duas décadas, tendo encerrado algures nos anos 80. Dele resta apenas uma fotografia, mas muitas, afectuosas e animadas recordações daqueles que o frequentaram.