“As Artimanhas de Scapin”, de Molière, encenadas por João Mota, estreiam-se no dia 17, em Lisboa, na Comuna, teatro que foi “esquecido” na remodelação da Praça de Espanha e ficou dentro do estaleiro das obras, sem acessos nem iluminação.

“Esqueceram-se de nós. É muito triste. Há 48 anos que aqui estamos. Vejo o tempo a passar e nada é feito. É esta a importância que dão à cultura”, afirmou, no final de um ensaio de imprensa da peça, o encenador e diretor da Comuna, João Mota, admitindo ainda ter esperança de que, até ao dia da estreia, a autarquia lisboeta consiga melhorar a acessibilidade.

Para se chegar ao edifício de A Comuna – Teatro de Pesquisa, localizado na Praça de Espanha, é necessário contornar toda a vedação dentro da qual decorrem as obras, com grande parte do percurso a ter de ser feito no alcatrão da via automóvel.

À chegada ao teatro, apenas um pequeno caminho em terra batida foi aberto por entre a vedação para se conseguir entrar, mas à noite não há iluminação e não existem quaisquer indicações ou sinalização de caminhos, lamenta João Mota, que receia ver comprometida a estreia e restantes exibições da peça devido a estas condições, que vêm agravar a já difícil situação vivida no meio artístico e nas salas de espetáculos devido à Covid-19.

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A sala que vai receber “As Artimanhas de Scarpin”, peça de Molière, encenada por João Mota, a partir da versão de Carlos Drummond de Andrade.

Tem capacidade para 120 pessoas, mas vai ficar limitada a um máximo de 50, para cumprir as regras de distanciamento impostas pela pandemia.

A cena passa-se num cais de Nápoles e o cenário é sóbrio, composto apenas por malas empilhadas provenientes de navios de portos longínquos, e de um lustre, alusivo ao Palais-Royal, em Paris, teatro onde pela primeira vez se representou a obra. A ideia deste cenário é deixar espaço ao talento dos atores, porque são eles que fazem a peça, destaca o encenador, que confessa gostar de usar palcos vazios.

“As Artimanhas de Scapin” foi escrita por Molière, em 1671, dois anos antes de morrer, e vai beber à commedia dell’arte, sendo “uma grande brincadeira, mas com grandes improvisações“, diz o encenador, destacando a importância de, numa altura como a que se vive, apresentar “uma peça que dispõe bem”.

Inicialmente criticada pela sua estética, julgada demasiado popular e até mesmo ofensiva, esta comédia viria a granjear enorme popularidade depois da morte do seu autor, tornando-se uma das peças mais representadas do repertório teatral francês. Apesar de ser uma comédia, é também uma crítica à sociedade, à burguesia, aos bancos, à burocracia, às injustiças, ao capitalismo, às pessoas que vivem para o dinheiro, às mentiras, aos enganos, explicou.

Não é por acaso que na peça cada velho (são dois velhos ricos) entra em cena carregando uma arca sem a ajuda de um criado, porque “é o tesouro deles”, e representa essa ganância. Mas é também uma crítica “aos amores proibidos, e ao medo dos jovens em relação aos pais”, acrescentou.

João Mota fala igualmente das aprendizagens feitas através de Scapin, “o filósofo do povo”, cheio de manhas, e “manha é sinal de inteligência”.

Esta é uma das razões por que o encenador escolheu a versão traduzida pelo poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, de 1962: “A tradução portuguesa é ‘As velhacarias de Scapin’, mas velhacarias é uma coisa má, e eu prefiro a versão de Carlos Drummond de Andrade, que fala em artimanhas”.

Para João Mota, “as artimanhas de Scapin são o elogio desse povo anónimo que com os seus saberes adquiridos nessa luta diária de sobrevivência, perante uma sociedade de fraudes, mentiras e ‘snobeira’, oprimindo todos, mesmo os da sua própria família”.

A peça apresenta a história de dois jovens — Octávio e Leandro – filhos de comerciantes ricos, que, na ausência dos pais, se enamoram de duas raparigas: um casa-se secretamente com uma jovem pobre de nome Jacinta, e o outro apaixona-se por uma cigana chamada Zerbineta. Acontece que os pais, dois homens autoritários, regressam mais cedo das viagens e trazem planos para casarem os seus filhos por conveniência e unicamente interessados em ampliar as suas fortunas e o estatuto social das respetivas famílias. Os jovens pedem então ajuda a Scapin, um criado reconhecido pela sua ardileza e arte de manipulação, que vai elaborar uma série de artimanhas para ajudar os jovens nas suas intenções amorosas.

Este Scapin é uma representação moderna, para a qual João Mota escolheu um homem mais velho, e não um jovem como muitas vezes é representado, porque queria alguém “com saberes adquiridos, que a vida lhe foi dando”.

Há uma figura de grande importância na história, principalmente pela relação que tem com Scapin, um outro servo, de nome Silvestre, que se apresenta como um aprendiz, um discípulo e apaixonado pelas manhas do seu mestre, e que deixa no ar a impressão de que futuramente se tornará um outro Scapin, explica o encenador.

A peça foi apresentada no Festival de Almada, de 16 a 19 de julho, em apresentações que estiveram sempre esgotadas, segundo João Mota.

Estreia-se agora em Lisboa e vai estar em cena de 17 de setembro a 1 de novembro, de quarta-feira a sábado, às 21h, e aos domingos às 16h.