Donald Ray Pollock, o autor de The Devil all the Time, que Antonio Campos adaptou para a Netflix em “Sempre o Diabo”, chegou tardiamente à escrita, tendo publicado o seu primeiro livro, um conjunto de contos, Knockemstiff, apenas aos 54 anos, em 2008, seguindo-se em 2011, o romance “The Devil All the Time”. Todas estas narrativas são ambientadas na vila natal do autor, chamada precisamente Knockemstiff, e na região do Ohio onde ela se situa. Pollock foi saudado pela crítica americana como um novo representante do chamado “gótico saloio” (ou “hillbilly gothic”), e um continuador de autores como William Faulkner, Flannery O’Connor ou Jim Thompson, pelas estrias de policial.

[Veja o “trailer” de “Sempre o Diabo”:]

Perante o filme de Campos (que também escreveu o argumento com o seu irmão Paulo), podemos concluir que ou a crítica exagerou, e muito, nos encómios a Pollock; ou o realizador não esteve à altura do universo do escritor. Narrado pelo próprio Pollock, “Sempre o Diabo” é um catálogo estereotipado e repetitivo de desgraças que se abatem sobre as pessoas e de crueldades várias perpetradas por gente perversa sobre indivíduos vulneráveis, inocentes ou indefesos, sob a forma de uma série de histórias cruzadas, e unidas pelo sítio em que se passam e pelas personagens que as povoam. E em que Campos não pára de nos lembrar, com letras maiúsculas e sublinhado a grosso, que o mundo é mau, o homem o predador do seu semelhante e a religião um lamaçal de fanatismo.

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[Veja uma entrevista com o realizador Antonio Campos:]

A ação decorre dos anos 40 aos 60, com muitos avanços e recuos no tempo. Quando era miúdo, Arvid, o pivô da fita (interpretado por Michael Banks Repeta quando criança e por Tom Holland quando crescido) perdeu a mãe para o cancro, e o pai, um veterano da II Guerra Mundial, matou e crucificou o cão da família como sacrifício para salvar a mulher, suicidando-se depois da morte desta. Arvid cresceu com a avó, o tio e uma irmã adotiva muito ingénua e muito crente, que é maltratada por colegas do liceu, e que depois de ser engravidada por um pregador concupiscente, se enforca no celeiro. Mais desgraçado que isto, só na literatura de cordel.

[Veja Tom Holland falar sobre a sua personagem:]

O sofredor Arvid é das poucas pessoas decentes de “Sempre o Diabo”, e está rodeado de familiares fanáticos religiosos, matarruanos brutais, pregadores assassinos ou lúbricos e polícias corruptos, mais um casal de “serial killers”, ele um besuntão e ela uma prostituta,  que fotografam as suas vítimas, sempre rapazes que pedem boleia, em poses pornográficas antes de as matarem. Todos, menos Arvid, são muito menos personagens de pleno direito do que clichés ambulantes e prontos-a-execrar. A subtileza não é, claramente, o forte de Antonio Campos, que funciona por “overdose” de desditas, maldade a granel, acumulação de violência sórdida e vilões de colar com cuspo.

[Veja uma sequência do filme:]

Invocar pesos-pesados quer do “gótico” regionalista, quer do policial naturalista, como os citados Flannery O’Connor, William Faulkner e Jim Thompson a propósito deste filme” raso, maniqueísta e reiterativo, sem tutano dramático nem préstimo psicológico, é incorrer em crime de referência abusiva. Campos dilapida ainda um apreciável elenco (Robert Pattinson está particularmente ridículo no pregador de falinhas mansas e tarado sexual) e usa e abusa do velho truque de pôr canções “pop” inócuas como fundo musical nas sequências mais violentas e gráficas, num contraponto tão simplista como óbvio, o horror filmado ao som de melodias fofinhas. Duas horas disto é uma penitência demasiado severa. O diabo que os carregue. 

“Sempre o Diabo” já está disponível na Netflix