Quando Paulo de Carvalho compôs a melodia da canção que se viria a tornar “Lisboa, Menina e Moça”, o novo tema oficial da cidade de Lisboa assim decretado pela Câmara Municipal da capital — em homenagem a Carlos do Carmo —, a ideia não era compor uma música cuja letra fosse sobre Lisboa.

O tema, na sua primeira versão, foi feito no final de 1975 com letra escrita por Joaquim Pessoa, um poeta, escritor, artista plástico, publicitário, letrista e professor universitário português que chegou a ser diretor da Sociedade Portuguesa de Autores e diretor e colaborador de jornais e revistas. E não versava sobre a capital do país. O título dessa primeira versão, que foi rejeitada pelo júri do Festival da Canção de 1976, torna isso muito claro: o primeiro esboço chamava-se “Do Algarve ao Minho”.

A canção foi vetada pelo júri do famoso festival de 1976 da RTP, no qual Carlos do Carmo interpretou todas as oito canções a concurso, mas o fadista viria a interessar-se pelo tema e mostraria interesse em gravá-lo. Só depois de reescrita a letra, cuja maioria dos versos passou a pertencer a Ary dos Santos mas que teve também contributo de Joaquim Pessoa e Fernando Tordo, a melodia passou a servir uma cantiga sobre a capital. E com o tempo, a canção tornou-se um êxito tal que agora passa a ser oficialmente o hino da cidade.

A história é recordada ao Observador por Paulo de Carvalho, autor da composição musical (o instrumental) da canção. O músico e cantor fez, com letras de Joaquim Pessoa, dois temas para concorrer ao festival. Um, “Onde É Que Tu Moras”, foi selecionado. O outro, “Do Algarve ao Minho”, não. “O júri não gostou”, lembra Paulo de Carvalho em conversa telefónica.

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A música não foi escolhida, mas ficou nas últimas finalistas para o ser. O Carlos do Carmo acompanhava a votação desse primeiro júri que escolhia as oito cantigas [a concurso no festival]. Essa não foi escolhida, mas ele gostou da melodia. E pediu para que aquela música pudesse, tendo outra letra, fazer parte do LP [disco de vinil] que se faria com dez canções, as oito do festival e duas extra. A nona já estava escolhida, a 10ª ele pediu para ser aquela música”, recorda Paulo de Carvalho.

Não se recordando exatamente dos contornos da composição, Paulo de Carvalho sabe que esta foi estruturada à guitarra acústica. “Toco pessimamente viola. Já toquei um pouco melhor mas para as minhas canções não tive necessidade de aperfeiçoar o pouco que tocava. Mas na altura andava de viola e a música foi feita à viola”. Outro dos detalhes que recorda da melodia instrumental da canção é que a composição foi rápida: “Há músicas que são mais elaboradas e essa não foi. É daquelas que sai à primeira” conta. Curiosamente, nota, as canções que compôs “à primeira” têm ficado na memória coletiva: “ Aconteceu-me com ‘Os Putos’, com ‘O Homem das Castanhas’, com uma que fiz para a Mariza que é a ‘Meu Fado Meu’…

Na altura, a canção que começara por ser de Paulo de Carvalho e Joaquim Pessoa — já pensada para Carlos do Carmo a interpretar, mas no festival — tornar-se-ia também do fadista. Fernando Tordo e Joaquim Pessoa viriam a ser acrescentados à equipa que trabalhou e mudou o tema. “Dávamo-nos todos. Já tinha começado a fazer um ou outro fado para o Carlos do Carmo e ele sugeriu trabalharmos com o José Carlos Ary dos Santos”, lembra.

Fotografia antiga de Paulo de Carvalho (@ DR)

A relação entre Paulo de Carvalho e Carlos do Carmo tinha tido um episódio curioso pouco mais de dois anos antes. Em 1973, “ainda antes do 25 de abril”, o músico que tocou bateria nos Sheiks e depois “em coisas mais profissionais no acompanhamento de cantores” soube que Carlos do Carmo precisava de um baterista. “Conhecia-o mal na altura, tratava-o por você. Ainda era você para aqui, você para acolá. Mas o Carlos precisou de um baterista para ir ao Canadá e aos EUA e ofereci-me para ir”. Foi.

Pouco mais de dois anos volvidos, a relação entre os dois já era outra. E com o esboço de “Do Algarve ao Minho” já mostrado a Carlos do Carmo, foram todos a casa de Ary dos Santos para que a canção ganhasse uma letra nova. “O Ary fazia a letra ao pé de nós, trabalhava connosco. Fazia-a com quem fazia as músicas. Esta foi feita com mais quatro pessoas presentes: o Carlos do Carmo, eu, o Fernando Tordo e o Joaquim Pessoa. Fizemo-la em casa dele, na velha mesa da casa da Rua da Saudade [no 1º andar do número 23 dessa rua lisboeta, onde Ary morava] onde jantava quando tinha convidados. Era a mesa de trabalho e a mesa de jantar ao mesmo tempo”.

Carlos do Carmo (1939-2021): o nome dele era fado

Quanto tempo levou José Carlos Ary dos Santos a escrever a letra que viria a figurar em “Lisboa, Menina e Moça”, com o contributo de Fernando Tordo e Joaquim Pessoa? “Para aí uma hora, uma hora e meia. Foi feita muito rapidamente”, recorda Paulo de Carvalho. “O Ary tinha uma coisa sensacional. Muitas vezes fazia letras com relativa facilidade. Era difícil ficar preso a qualquer coisa em que não conseguisse andar para a frente. A maior parte das vezes tinha até letras que já eram uma grande letra e rasgava aquilo tudo, dizia ‘não gosto’, fazia logo outra e ainda melhor”, acrescenta.

Já Fernando Tordo terá contribuído com alguns versos da canção, como “Cidade a ponto luz bordada”, de que Paulo de Carvalho não se esquece. “Verdadeiramente quem fez a enorme maioria dos versos foi o Zé Carlos [Ary dos Santos]. Mas há versos ali que são de todos nós. Do Fernando Tordo — lembro-me melhor do que ele — há esse verso lindíssimo”. E que tem uma explicação: “O que é ‘cidade a ponto luz bordada’? Na altura íamos muito para o Algarve com filhos pequenos e voltávamos às 23h, meia-noite, 1 da manhã… vínhamos a essas horas para os miúdos virem a dormir no carro. E a essas horas, quando se entra em Lisboa parece realmente uma cidade a ponto luz bordada”.

Quando ouviu a canção na sua nova versão, que viria também a ser editada por Carlos do Carmo em versão single na discográfica Movieplay — com “Estrela da Tarde” como lado B —, Paulo de Carvalho não percebeu logo o impacto que poderia ter. “Acho que nunca sabemos isso. Se alguém tivesse esse segredo [perceber o que vai ser um sucesso] era dono disto tudo”.

O próprio Paulo de Carvalho viria a fazer a sua versão da canção, “curiosamente com os dois guitarristas que tocaram nos discos do Carlos [do Carmo], António Chaínho e José Maria Nóbrega”. Mas foi a versão do fadista — uma das maiores vozes da história do fado, que morreu a 1 de janeiro deste ano com 81 anos — a primeira a ser originalmente editada e a que ficará agora registada como uma espécie de hino de Lisboa.

@ Facebook Paulo de Carvalho

Na sua explicação para a homenagem, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, defendeu que a autarquia limitou-se a tornar oficial o que oficiosamente os lisboetas já tinham assumido: que é esta a canção que mais e melhor define Lisboa. Paulo de Carvalho congratula-se com a escolha de uma canção que durante vários anos não foi sequer reconhecida como composição sua por motivos a si alheios, ao intérprete Carlos do Carmo ou aos outros autores da letra (Ary dos Santos, Fernando Tordo, Joaquim Pessoa): “Durante os primeiros 15 anos após ser feita, por aí, a música saiu como tendo tido quatro autores: o Joaquim Pessoa, o Fernando Tordo, o Ary dos Santos e eu. A música realmente era minha. Aquilo foi dividido por quatro e nem percebi bem o dinheiro das autorias naqueles 15 anos. Mas a dada altura o próprio Carlos do Carmo decidiu meter-se nisso e começou a pedir na Sociedade Portuguesa de Autores [SPA] que aquilo fosse considerado uma música minha”.

E é “Lisboa, Menina e Moça” um fado? Palavra ao seu compositor: “Tive grandes discussões com o Carlos [do Carmo] porque acho que os fados que fiz para ele — o ‘Lisboa, Menina e Moça’, ‘Os Putos’, ‘O Homem das Castanhas’ — são fados-canção, porque têm refrões. Ele defendia que eram fados. Se as próprias pessoas, os ouvintes, os consideravam fados…”.