Em 1817, o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge cunhou o termo “suspension of disbelief” (a suspensão do descrédito) para descrever o modo como, quando nos envolvemos profundamente numa narrativa, paramos de pensar que é só uma história. No fundo, é o que nos permite acreditar na fantasia e até descurar alguns detalhes mais rebuscados da ficção e da arte no geral. Ora para apreciar “Lupin” é preciso uma dose por vezes bem generosa de suspensão do descrédito – mas, chegando lá, recebemos em troca cinco episódios (para já, faltam outros tantos) de bom entretenimento.
Claro que “Lupin”, produção francesa original da Netflix e um êxito mundial, está muito longe de ser o único caso que obriga a uma certa elasticidade por parte do espectador para resultar. A série protagonizada por Omar Sy, de “Amigos Improváveis” (o filme, não o reality show da SIC com Nel Monteiro), faz muitas vezes lembrar “Ocean’s Eleven” ou até “Casa de Papel”, com uma grande diferença: aqui não há um ensemble de personagens pelo qual torcer, estamos na mão do carisma de uma única persona.
Trata-se de Assane Diop, um emigrante senegalês a viver em França desde criança. Criado pelo pai viúvo, Diop é um misterioso lobo solitário em busca de vingança por parte de uma família de magnatas. Porém, balança na perfeição este catalisador com o facto de ser carismático, altamente gostável e até amigável. Um criminoso a tentar fazer o bem, com a sua quase inabalável pose de cavalheiro. Essa é, aliás, uma palavra amiúde usada para o descrever, quer por amigos quer por rivais. E mais sobre o enredo não digo, porque uma das grandes mais valias de “Lupin” é exatamente ir descobrindo quem é aquela pessoa e qual é o seu objetivo concreto.
[o trailer de Lupin:]
Apesar do sucesso ter sido quase instantâneo (estreou-se no dia 8 e foi quase automaticamente número 1 da plataforma em vários países, Portugal incluído), a verdade é que o trailer de “Lupin” não lhe faz um bom serviço. Aqui me admito uma capitalista em busca do vil metal: só comecei a ver porque aqui do Observador me pagaram para tal. O trailer fez-me pensar que se tratava de uma espécie de “Casa de Papel” aguada, mais uma série em torno da mecânica de um assalto impossível que afinal estava ali mesmo à mão de semear – neste caso, não uma Casa da Moeda, mas sim o Museu do Louvre e um algo forçado colar raro de Maria Antonieta (só faltou vir decorado com migalhas de bolo). Porém, o assalto resolve-se em meio episódio, porque é apenas um mero detalhe de todo o mirabolante plano de vingança de Diop.
Mas se o protagonista se chama Assane Diop, então quem é, afinal, Lupin? Este é talvez um dos aspetos mais frescos da série. Criado em 1905 pelo escritor francês Maurice Leblanc, o ladrão Arsène Lupin é uma espécie de Robin Hood arraçado de Sherlock Holmes. Mestre do disfarce e da ilusão, rouba com elegância e até com (pelo menos aparente) moralidade. Em vez de se tentar aqui fazer o enésimo exercício inerte de “e se puséssemos o personagem X no ano Y”, aqui Arsène Lupin é a inspiração do protagonista, cujos livros o acompanham desde adolescência e servem de matriz ao modus operandis dos seus crimes, assim como se presta a anagramas quando precisa de um nome falso. Não é de todo essencial ter lido a obra de Leblanc para se compreender a série (eu não li nenhum dos dezoito romances, trinta e nove novelas ou cinco peças de teatro), mas o imaginário de Lupin é muito marcante em todos os episódios e é mesmo encarado como pista por um dos polícias, no qual ninguém acredita (um colega diz-lhe mesmo, em tom jocoso, “avisa-me se encontrares paralelismos entre o assaltante do Louvre e o Harry Potter”).
A questão da raça é outro ponto interessante e bem gerido na trama. O facto de Assane ser um imigrante senegalês é essencial à história, mas são poucas as vezes em que o racismo é evidente e verbalizado. O protagonista chega a ser chamado de “macaco” de modo direto, mas é tão ou mais ofensivo o momento em que uma dona de um antiquário lhe fala com orgulho do seu espólio de diamantes trazidos do Congo belga. Em vez de lutar abertamente contra o preconceito, Assane coloca-o a funcionar em seu favor, evidenciando como se consegue esconder à vista de todos exatamente por, pela sua cor de pele, não ser visto como um protagonista. No Louvre, no primeiro episódio, ninguém olha para o empregado da limpeza, por exemplo – apesar de, quando se disfarça de multimilionário licitador, ser alvo de mais escrutínio do que os ricaços brancos no mesmo leilão. Também deliciosamente irónicas são as vezes em que joga com o preconceito do chamado “eles para mim são todos iguais” e de como não o distinguem de outros homens negros.
Dos criadores George Kay (que passou por “Killing Eve”) e François Uzan (de “Family Business,” uma série também da Netflix sobre uma família francesa que gere uma coffeeshop de drogas leves), “Lupin” tem uma realização eficaz, um ritmo escorreito, um ambiente quase Bondiano e um protagonista carismático. Chega e sobra para alavancar os momentos menos bons (o quarto episódio, nomeadamente as cenas passadas num estúdio de televisão, roçam o palerma), até porque a generalidade do guião está salvaguardada. Resta aguardar pelos cinco episódios que fecham esta primeira temporada e esperar que o golpe de mestre não se esfarele em descrédito.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa