Enviado especial do Observador, em Tóquio

Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro já tinham passado com um quinto lugar, o regresso à realidade estava a ser mais complicado do que pensava sem que percebesse ao certo o que se passava. “Foi como se ninguém fosse capaz de perceber a dor e os desafios que estava a enfrentar nessa altura.E ficou pior, e pior, e pior, e pior até que fritou tudo. Lembro-me que, de manhã, passava por todas as emoções, havia quase um deslumbramento, a ter de fazer coisas mas sem qualquer motivação ou vontade de me mexer”, explicou à CNN. Em janeiro de 2018, um ano e meio depois da estreia olímpica, bateu no fundo e quase pensou suicidar-se. Foi um momento limite.

Dentro do carro, às voltas de um ado para o outro atraída por um lugar escuro onde parecia não ver um ponto de retorno que hoje consegue perceber que existia, pensou em atirar-se contra as árvores no declive de uma estrada em Mississippi. Não o fez. E o episódio que mais não era do que um espelho da sua saúde mental teve o condão de motivar a procura de uma ajuda que achava não ser possível mas que estava ali à mão. Os meses passaram e, mesmo entre pandemia, Raven Sauderns tornou-se um ícone não só de questões como a sua que nestes Jogos estão a ser muito discutidas mas também dos direitos LGBTI e da comunidade negra.

Este domingo, no concurso onde Auriol Dongmo terminou na quarta posição, a americana ganhou a sua primeira medalha numa grande competição, acabando com a medalha de prata apenas atrás de Lijiao Gong. Hoje, recordou o texto improvisado que recebeu da antiga terapeuta nesse dia em janeiro de 2018, uma SMS que funcionou como um último esforço para voltar a casa e pedir a ajuda indicada que precisava. E com sucesso.

Nascida e criada em Charleston, na Carolina do Sul, Raven começou por jogar basquetebol durante alguns anos antes de parar de crescer e dedicar-se apenas ao atletismo, não demorando a quebrar uma série de recordes da sua categoria de juniores e vencer vários campeonatos nacionais universitários entre a Burke High School e a seguir a universidade de Mississippi (congelou depois a matrícula em 2018, assumindo nessa fase que iria tratar de “assuntos pessoais e mentais”. Nesse caminho, os Jogos Olímpicos tiveram peso para um deslumbramento que começou na cerimónia de abertura do Rio de Janeiro e que foi tendo depois continuidade nos meses seguintes, em que não soube nem conseguiu lidar com toda a pressão também criada, numa ida ao Brasil que levou ainda a que o mayor de Charleston, John Tecklenburg, proclamasse o dia 17 de agosto como o dia Raven Saunders.

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“Era nova, era negra e era gay. Tinha acabado de mudar para o Mississippi. Havia muito estigma sobre vários assuntos”, explicou sobre a quebra que teve e que assumiu, na totalidade e sem esconder qualquer episódio, no ano de 2019. “Partilhei até a minha imagem na pulseira de um hospital quando fui admitida, para mostrar às pessoas que era algo real, que existem mais pessoas a passar ou tentar lidar com isto. Há tanta gente que não é atleta e que está a lidar com isto. Há tanta gente que não sabia o porquê de ter deixado a universidade e que só agora percebeu. Há tanta gente que me agradece por estar a passar pelo mesmo mas não ter coragem para lidar com a situação. É por isso que cada vez mais falo sobre saúde mental”, acrescentou a americana.

Com problemas de saúde (chegou também a ser operada a uma lesão no ano passado) e financeiros, Raven foi recolocada em San Diego, onde teve a oportunidade de trabalhar a sua dieta e a parte da saúde mental, com muita meditação pelo meio, tendo o apoio da família e dos treinadores no Centro de treino Olímpico de Chula Vista. Foi lá que encontrou o ambiente positivo que procurava, com vários campeões e ex-campeões que quase davam uma maior motivação para melhorar aquilo que está destinada a fazer: ser lançadora do peso. E foi com todo esse trabalho que chegou à medalha olímpica, neste caso a prata com o registo máximo de 19,79.

Na pista, Raven Saunders é fácil de identificar. Desta vez com o cabelo pintado metade de verde e metade de roxo e não apenas com aquele verde que lhe deu a alcunha de Hulk, a americana, que até fez a qualificação com uma máscara do Joker, voltou à máscara pela qual é mais conhecida, acrescentando ainda uns enormes óculos escuros que fazem que seja impossível de passar ao lado. “O Hulk é como uma mistura de foco e raiva com agressão e força, tudo aquilo que ponho nos lançamentos do peso”, contou antes dos Jogos Olímpicos. Inspiração ou não, Raven conseguiu a medalha de prata, tendo depois feito a festa dentro do estádio com a bandeira dos EUA, entre poses e uma série de momentos mais excêntricos de celebração a abrilhantar o festejo.

Mais tarde, na zona mista onde o Observador se manteve depois da passagem de Auriol Dongmo, o espectáculo continuou. Ainda com todos os dedos da mão direita ligados, com a bandeira americana e os óculos na mão, a máscara para baixo e um novo piercing dourado no nariz que se juntou a um que já tinha, a lançadora falou de saúde mental, da defesa dos direitos da comunidade LGBTI e dos negros, da marca acima de 20 metros que ainda vai chegar e dos tempos em que colocou uma fotografia nas redes sociais do talão da conta bancária, que estava negativa, algo que não acontece agora perante os apoios que foi juntando. Os ténis, esses, eram da coleção dos Air Jordan. O estilo não é o mais comum mas assim como Raven cresceu a ver as irmãs Williams a dominar o ténis, entre outras referências, agora é um ícone para as novas gerações num tempo de mudança.