Depois de janeiro de 1998, Monica Lewinsky deixou de ser uma anónima e é agora trazida de volta a propósito de “Impeachment”, o título da nova temporada de “American Crime Story”, de Ryan Murphy, focada nos acontecimentos que protagonizou, juntamente com Bill Clinton. Lewinsky é uma das produtoras da série e serve de peça-chave para reconstituir a relação que teve com o antigo presidente dos EUA — algo que diz ter sido “um erro colossal”. Reviver de novo o papel de “aquela mulher”, pelo qual ficou conhecida, é uma forma de “continuar a definir” quem ela é para conseguir seguir em frente, mesmo que tenha de “correr riscos”.

Estar envolvida neste processo não foi tarefa fácil para Monica Lewinsky, que ficou com transtorno de stress pós-traumático depois de a polémica ter rebentado em 1998. A leitura dos guiões levava-a várias vezes a consultar, por videochamada, o seu terapeuta, ao mesmo tempo que estar envolvida na produção foi uma forma de “integrar” o passado com o presente, disse ao New York Times (NYT) — e de perceber o que ainda estava por sarar.

Lewinsky aconselhou a produção em tudo o que podia, desde o diálogo ao guarda-roupa, para tornar a série o mais fiel possível, fazendo uma “dramatização” sobre o seu passado, ao mesmo tempo que tenta olhar em frente.

“A realidade é que esta história faz parte de uma conversa coletiva há 20 anos, e à medida que eu evoluo, à medida que o mundo evolui, ela ganha significados diferentes”, contou ao NYT, admitindo que não sabe se “Impeachment” será o ponto final nesta história. “Pode ser a última vez. Espero que seja a última vez. Mas não faço ideia”.

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[o trailer de “Impeachment: American Crime Story”:]

De estagiária a ativista. Como Monica tentou ultrapassar o abuso de poder

A série de 10 episódios passa-se nos anos 90 e revisita uma série de escândalos e insinuações que envolveram a Casa Branca na administração de Clinton: desde o processo de assédio sexual de Paula Jones contra o antigo presidente, a relação de Clinton com Monica Lewinsky, a amizade da própria com Linda Tripp (que morreu em 2020) e o emaranhado de mentiras, meias-verdades e gravações confidenciais que acabaram nas mãos do procurador Kenneth Starr, com o escândalo a culminar no processo de impeachment de Clinton por perjúrio e obstrução à justiça, embora este tenha sido posteriormente absolvido no Senado.

Morreu Linda Tripp, a mulher que denunciou o “affair” de Bill Clinton

Lewinsky era estagiária na Casa Branca e tinha 22 anos quando começou a sua relação com o então presidente Clinton — um caso que terá durado 18 meses. Apesar de ter mudado de posição para o Pentágono passado algum tempo, Monica e Bill Clinton continuavam a encontrar-se na Sala Oval.

O atual papel de Lewinsky como forte e assumida ativista anti-bullying e cyberbullying vem sobretudo do facto de Monica se ter tornado na altura, quando o escândalo veio a público, numa espécie de saco de pancada da opinião pública, alvo de piadas constantes — David Letterman chegou a pedir desculpa por ter gozado com Monica — e julgamentos infundados. “Não tive relações sexuais com aquela mulher”, foi com esta frase que Bill Clintou se defendeu na altura. Rapidamente, Monica deixou de ter nome para passar a ser “aquela mulher”.

Foram quase duas décadas a tentar recuperar uma reputação, mas Monica deixou o sonho de psicologia forense para trás e endividou-se para dar conta das despesas que o escândalo lhe causou — chegou a lançar uma linha de carteiras em 1999 que acabou por não ser bem sucedida e até apresentou um reality show, “Mr. Personality”.

Só em 2014, num manifesto que escreveu para a revista Vanity Fair, é que o jogo começou a mudar. “Está na hora de queimar a boina e enterrar o vestido azul”, escreveu fazendo uma clara referência  às peças de roupa que mais marcaram o escândalo — a boina era a que usava numa imagem em que Bill Clinton a abraçava e o vestido, entregue às autoridades, tinha vestígios de ADN do democrata. Nesse mesmo artigo, Monica volta a reforçar que terá sido uma relação “consensual” e que se tinha tornado num “bode expiatório para proteger a sua [de Clinton] posição poderosa”, disse ainda numa tentativa de contar o seu lado da história que até ali ninguém quis ouvir.

E é essa versão da história, com a visão de quem a viveu, que é retratada em “Impeachment”. “Quando cometes um erro colossal como eu cometi tão cedo na sua vida, e perdes tanto por causa dele, a ideia de cometer um erro é catastrófica”, disse Monica a Jessica Bennett, do New York Times, numa apresentação da série em julho com a qual concordou em estar presente. “E, no entanto, para poder avançar, tenho de correr riscos. Tenho de experimentar coisas. Tenho de continuar a definir quem eu sou”.

Durante anos, Monica Lewinsky só quis ter uma vida normal, coisa que nunca aconteceu. “Queria ter um trabalho, um marido, queria ter filhos. Queria ser tratada normalmente”, disse ao NYT sobre os anos que se seguiram ao escândalo, já depois dos anos 2000. Em 2016, ao The Guardian, Lewinsky admitiu ter estado “muito perto” de cometer suícidio.

Foram anos a carregar um fardo e a olhar para o passado numa constante cultura de humilhação, até ter percebido que podia usar a sua voz como catalisador da sua história e mesmo a de outras mulheres que foram postas de lado e julgadas em praça pública.

O reconhecimento, por fim

Num outro artigo da Vanity Fair, em 2018, Monica escreveu sobre o movimento #MeToo, do qual se tornou uma voz ativa. “Há algumas pessoas que sentem que as minhas experiências na Casa Branca não têm lugar neste movimento, uma vez que o que aconteceu entre mim e Bill Clinton não foi agressão sexual, embora reconheçamos agora que constituiu um abuso grosseiro de poder”, escreveu dizendo que apesar de ter sido consensual, Clinton não deixava de ser o seu patrão e “o homem mais poderoso do planeta”.

O abuso veio do rescaldo do escândalo que se seguiu. Hillary Clinton, por exemplo, nesse mesmo ano, afirmou que o caso que o seu marido tinha tido em 1998 com Lewinsky não tinha sido “um abuso de poder”.

Em 2018, e já com reconhecimento de Hollywood, Monica foi abordada pelo produtor Ryan Murphy, da série “American Story”. “Ninguém devia contar a tua história além de ti e é nojento se o fizerem”, disse-lhe. “Se quiseres produzir a série comigo, eu adoraria; mas devias ser a produtora e devias ganhar todo o dinheiro com isto”.

Apesar de preferir nunca ter sido fonte de inspiração ou mesmo uma chave de reconstituição em nenhuma história de televisão, Monica concordou. “É muito melhor estar a passar por isto como parte de algo”, disse, “do que estar desesperadamente a tentar descobrir o que está no programa”.

Monica consegue agora, mais de 20 anos depois do escândalo, ser independente financeiramente com os seus trabalhos como produtora e em palestras que dá como ativista que é. Construiu ao longo dos anos uma barreira que a protege de momentos que podem ser desconfortáveis, mas está muito mais “confiante”, refere a jornalista do New York Times que a conhece há já vários anos.

A simples palavra “Clinton” fazia-lhe confusão, mas nada que o tempo não curasse — Monica acabou por apoiar Hillary na campanha de 2016. “Não me afeta da mesma forma”, disse Monica ao NYT sobre ver a família Clinton nas notícias. “Eles não se aproximam tanto como durante as duas décadas que passaram da minha vida”.