O que é que cada um de nós é capaz de fazer em caso de desespero? A resposta é universal: qualquer coisa. Quando tudo falha, quando a ciência não dá respostas ou garante que a única saída é a morte, quando se ouve falar de um curandeiro que faz milagres algures no meio do Brasil, larga-se tudo e vai-se até lá. Acreditando em Deus ou não, acreditando no inexplicável ou não, no momento em que se esgotam as alternativas, vale tudo. Foi assim que João de Deus criou um império. A sua ascensão (mas também a sua queda) está agora contada na série documental da Netflix, “João de Deus: Cura e Crime”. Como alguém diz num dos episódios, é a história de um homem com “tanto de luz e fenómeno, como de sombra”.
Num país onde se multiplicam igrejas, religiões, crenças em divindades ou espíritos, não foi assim tão estranho surgir mais um médium. No final dos anos 70, instalou-se em Abadiânia, no estado de Goiás, e tudo começou a girar em torno daquela a que chamou Casa de Dom Inácio de Loyola. Era aí que, numa espécie de transe, encarnava diversas entidades, responsáveis pelos “milagres” que praticava. Mas naquela casa fazia-se algo mais. Em 2018, depois de uma reportagem emitida na televisão, na qual dez mulheres acusaram o curandeiro de abusos sexuais, o caso explodiu e virou filme de Hollywood — com direito a uma fuga, a uma caça ao homem e ao momento que que João de Deus se entrega às autoridades com as câmaras da comunicação social a registarem tudo.
[o trailer de “João de Deus: Cura e Crime”:]
Mesmo quem nunca ouviu falar da história consegue, através dos quatro episódios, entender como a fama e a influência daquele que nasceu como João Teixeira de Faria foram crescendo. “João de Deus: Cura e Crime” tem um lado fascinante e outro execrável. É fascinante porque não há nada que mova mais as pessoas do que a fé. Quando alguém recebe de um médico o diagnóstico de que nunca mais vai ver e, por outro lado, tem um médium que lhe garante que a cura está numa “cirurgia espiritual” que vai acontecer ali mesmo, de pé, num salão de paredes brancas e inóspitas, sem material esterilizado e muito menos uma equipa médica, com uma plateia cheia de gente a assistir, o que é que essa pessoa faz? Deixa que João de Deus lhe insira uma tesoura através de uma das narinas e dê mais de 20 voltas. Sim, isto e muito mais acontece a sangue frio. Depois há facas de cozinha, serras enferrujadas e, nós, deste lado do ecrã perguntamos: “Mas como é que alguém se sujeita a isto?” Seguem-se relatos de pessoas que tinham um cancro que desapareceu por magia, gente que entrou de cadeira de rodas e saiu a andar e, nós, espectadores, continuamos a achar que é tudo mentira ou coincidência.
O certo é que houve quem largasse as suas vidas para se instalar em Abadiânia e se tenha dedicado à causa de João de Deus. Houve estrangeiros que, perante o que presenciaram ali, foram depois espalhar a história pelo mundo, trazendo cada vez mais gente. Até Oprah Winfrey visitou o espaço e jurou que tinha sentido uma energia inigualável (seguiram-se muitas outras celebridades). Porém, o que os crentes que chegavam vestidos de branco para entrar naquelas correntes de oração e conseguir uma qualquer mudança de vida não viam é que, já no início, João de Deus era uma espécie de polvo com tentáculos em todo o lado (e aqui revela-se o lado execrável). As pensões, criadas para alojar os fiéis, entregavam-lhe parte do valor das estadias; os táxis davam-lhe uma percentagem das viagens e o mesmo acontecia com os autocarros; os souvenirs (água, terços, livros) e até medicação eram vendidos dentro das instalações. E para onde ia o dinheiro? Para cofres, tetos e gavetas com fundo falso das casas do médium. Quando foi detido, tinha milhões dentro de sacos de lixo, centenas de joias como esmeraldas e armas ilegais. Ninguém ousava ir contra ele — ou porque tinha negócios a manter, ou porque temia pela vida.
O mais interessante é ver que não há qualquer diferença entre quartos de hotéis de luxo de Nova Iorque, onde Harvey Weinstein abusava de atrizes e depois ameaçava que acabaria com as suas carreiras, e uma sala recôndita com santos nas paredes onde um auto-proclamado discípulo de Deus obrigava mulheres a atos que supostamente faziam parte de uma terapia. “Quer ser responsável pela morte da sua mãe? Para curar a sua mãe, tem de colaborar”, recorda ouvir uma das sobreviventes enquanto era abusada, sem ninguém que pudesse socorrê-la.
Como noutros casos, existia uma rede de pessoas que sabia, permitia, facilitava e escondia estes comportamentos. Mulheres que, quando tinham coragem para ir à polícia fazer queixa, ouviam que não havia muito a fazer. Vozes capazes do típico “se foi abusada, porque é que esperou 20 anos para falar?”. Na Casa de João de Deus, muitos viam que quando os supostos “espíritos de luz” estavam a tomar conta do médium, o que ele estava realmente a fazer era a perscrutar a fila para escolher as jovens que mais lhe agradavam e alguém (que continua por responsabilizar) encaminhava depois essas mulheres para sessões individuais. Mulheres que estavam ali, fragilizadas, num lugar que devia ser sagrado, protegidas por Deus e pela fé, eram, afinal, levadas para o maior trauma das suas vidas como se fossem para o matadouro.
Em Abadiânia, a Casa de Dom Inácio de Loyola continua aberta a pregar os ensinamentos de João de Deus. Os fiéis podem contar-se pelos dedos de uma mão, mas as paredes ainda têm fotos daquele que chegou a juntar multidões nos EUA, na Nova Zelândia ou no Canadá e os seus voluntários continuam a dizer que não acreditam nas acusações contra o líder — mesmo depois de mais de 300 mulheres terem feito queixa, mesmo depois de se saber que abusava da própria filha desde que esta tinha nove anos.
No final de 2019, as vítimas tiveram alguma justiça com a primeira de várias condenações por crimes sexuais. No entanto, com a pandemia da Covid-19, houve um irónico revés para as sobreviventes: enquanto estavam fechadas, em confinamento, nas suas casas, os advogados de João de Deus conseguiram tirá-lo da cadeia e colocá-lo em prisão domiciliária.
Sem nunca admitir nenhuma das acusações, disse numa entrevista concedida aos produtores da série documental: “Entreguei a minha vida na mão de Deus. Na minha consciência tenho a certeza que Deus vai-me livrar dessa”. A 26 de agosto, um dia após a estreia da minissérie documental, o médium de 79 anos voltou para a prisão.