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Patricia Highsmith, Tom Ripley e Itália: histórias de uma obsessão

Este artigo tem mais de 6 meses

Não é a primeira adaptação de "O Talentoso Mr. Ripley", mas a minissérie da Netflix trouxe de volta o universo dos livros de Highsmith, obscuro e misterioso. De onde vem e como chegou a 2024?

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Em Itália, numa passagem pela costa amalfitana, Patricia Highsmith instalou-se num hotel em Positano em 1952. Foi aí que, da varanda do quarto, teve um vislumbre de segundos que acabaria por marcar toda a carreira que haveria de construir

Sophie Bassouls

Em Itália, numa passagem pela costa amalfitana, Patricia Highsmith instalou-se num hotel em Positano em 1952. Foi aí que, da varanda do quarto, teve um vislumbre de segundos que acabaria por marcar toda a carreira que haveria de construir

Sophie Bassouls

Foi pouco depois de publicar O Desconhecido do Norte Expresso, a estreia literária em 1950, que Patricia Highsmith viajou para a Europa pela primeira vez. Em Itália, numa passagem pela costa amalfitana, instalou-se num hotel em Positano em 1952. Foi aí que, da varanda do quarto (como a própria revelou em diferentes ocasiões), teve um vislumbre de segundos que acabaria por marcar toda a carreira que haveria de construir. Ao longe viu “um jovem solitário, de calções e sandálias, com uma toalha ao ombro, que percorria a praia da direita para a esquerda”.

De repente, a imaginação da escritora começou a trabalhar: “Havia nele um ar de reflexão, talvez de inquietação. Teria tido uma discussão com alguém? O que é que lhe ia na cabeça?” Nunca mais o viu, mas não precisou. Para Highsmith, já tinha uma identidade: Tom Ripley. E, a partir daí, esse vulto ganhou as características de um vigarista que viaja para Itália teoricamente para levar de volta aos EUA Dickie Greenleaf, o filho de um magnata, acabando em vez disso a matá-lo para lhe roubar a identidade, a fortuna e o estilo de vida.

O Talentoso Mr. Ripley seria publicado em 1955 — seguindo-se quatro sequelas, em que o protagonista sai sempre impune dos crimes cometidos, formando assim a coleção conhecida como Ripliad. Na Netflix está há algumas semanas uma nova adaptação, Ripley, uma minissérie de oito episódios com Andrew Scott, Johnny Flynn e Dakota Fanning, que gerou um novo interesse pela personagem e pela costa amalfitana, que promete encher-se ainda mais de turistas nos próximos meses (sabe-se lá como).

[o trailer de “Ripley”:]

A inspiração para a narrativa surgiu também de um artigo que Highsmith leu no jornal The New York Herald Tribune e que guardou num dos seus cadernos de apontamentos. “Homem ‘enterrado’ como vítima de incêndio é detido como suspeito de homicídio”, dizia o título da notícia que contava a saga de Albert Paglino, um aparentemente pacato cortador de carne de St. Louis que, revelou a investigação, tinha um longo historial de fraude, roubo de identidade e homicídio.

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Quando começou a escrever aquele que viria a ser o seu quarto (e mais famoso) livro, a autora sentia-se “quase flácida”. Não era isso que pretendia com aquela personagem. “Decidi rasgar as páginas e começar de novo, mentalmente e também fisicamente, sentando-me na beira da cadeira. Porque é esse o tipo de jovem que Ripley é — um jovem na beira da cadeira, se é que está sentado sequer”, explicaria anos mais tarde num ensaio de 1989, já com o bestseller mais do que estabelecido no mercado literário.

A ação de O Talentoso Mr. Ripley acontece numa pequena localidade italiana à beira-mar, Mongibello, nome fictício (que pode, embora sem confirmação da própria, ter surgido do nome, precisamente Mongibello, pelo qual também é conhecida a montanha vulcânica Etna).

O nome pode ser novo, mas é a estética de Positano que dá o mote à história. Foi lá, na tal estadia de 1952, que nasceu a personagem principal — e provavelmente também aquela que é objeto da obsessão de Tom Ripley, Dickie Greenleaf, um herdeiro rico que se muda para Itália só porque quer viver uma aventura e vive às custas dos rendimentos da família. De acordo com algumas biografias de Patricia Highsmith, as férias da escritora foram passadas com Kathryn Hamill Cohen, rica, bonita e mulher de um conceituado editor em Londres. As duas mantinham uma relação amorosa, que Cohen terminou pouco depois por carta, marcada por obsessão, manipulação e fantasia. Highsmith nunca cometeu nenhum ato como os do seu protagonista mas chegou a admitir, em diversas ocasiões, que essas ideias lhe passavam pela cabeça e que era difícil distinguir realidade e ficção.

A capa da primeira edição de "O Talentoso Mr. Ripley", publicado nos EUA em 1955

A adaptação da Netflix, escrita por Steve Zaillian (O Irlandês, Moneyball — Jogada de Risco, Gangster Americano), deixou Positano para segundo plano e instalou-se em Atrani, “porque o Steve se apaixonou por Atrani”, revelou David Gropman, designer de produção, à revista Condé Nast Traveler.

Entre a escolha dos locais e os dias de gravações, Gropman passou quase dois anos em Itália à procura da estética perfeita. Inteiramente filmada a preto a branco, a minissérie quis destacar a arquitetura italiana. “Está simplesmente à nossa volta. Poder filmar naqueles edifícios incríveis foi uma experiência fantástica”, diz no mesmo artigo.

A história começa em Nova Iorque, onde a produção aconteceu em Chinatown e Madison Street, mas a maioria dos 200 locais de filmagens concentraram-se em Itália. Em Atrani, a Piazzetta Umberto serviu de exterior da casa de Marge (namorada de Dickie, interpretada por Dakota Fanning), mas há elementos mais especiais para David Gropman: “A pequena estação de correios era na realidade uma garagem com proporções estranhas que me pareceram perfeitas. Adoro o facto de estar situada num pequeno túnel que atravessa a praça da cidade”.

O Hotel Miramare existe realmente em Positano mas, para este projeto, a entrada de um convento de Atrani serviu de fachada e as cenas de interior foram filmadas numa casa particular cujo interior esvaziaram. “Tem aquela linda divisão de canto, onde o Tom fica, e que tem vista para o mar e para a casa de Dickie.”

As cenas na casa de Dickie foram, na realidade, gravadas em Capri, na Villa Torricella. A equipa de scouting tinha assinalado possibilidades em Ischia — onde o filme O Talentoso Mr. Ripley, de 1999 com Jude Law, Matt Damon e Gwyneth Paltrow foi rodado —, mas Steve Zaillian tinha o palacete debaixo de olho desde a ida ao festival de cinema de Capri. Porém, filmar lá não foi uma tarefa fácil. “Há três fações de uma família que vive na casa, por isso as partes da villa foram divididas. Tivemos de negociar com todas para ter autorização para utilizar as diferentes partes do edifício e assim montar a casa do Dickie.”

Em Roma, Tom Ripley instala-se no Hotel Excelsior. Contudo, nenhuma das cenas decorreu no verdadeiro Hotel Excelsior. O exterior pertence ao Hassler Roma, o interior ao Plaza (de Nova Iorque) e a suite do amigo Freddie existe de facto, mas no Palazzo Ruspoli, em Roma. A dança das cadeiras dos hotéis continua: o quarto de Palermo é, na realidade, em Roma.

Alain Delon (1960), Matt Damon (1999) e Andrew Scott (2024): diferentes Tom Ripley ao longo da história

Construir a estética de uma produção de época (esta decorre nos anos 60) acarreta muitas dores de cabeça e é um puzzle gigante de sítios que têm de fingir ser outros, mesmo que seja apenas por uns segundos no ecrã. Foi impossível filmar em plataformas ou estações de comboio. Por isso, o hall de conferências da Esposizione Universale Roma (o equivalente à Expo 98) serviu de estação, outro dos edifícios transformou-se no banco de Roma que Tom visita e a estação de Nápoles foi recriada num hospital abandonado dos anos 30.

Os oito episódios são uma visita guiada por Itália: Atrani, Nápoles, Roma, San Remo, Palermo, Veneza. Porém, está longe dos postais coloridos, das pizzas, da pasta e do gelato. As filmagens aconteceram no inverno, mostrando um lado mais deserto e despido dos locais turísticos. E a preto e branco. “Senti que seria distinto se fosse a preto e branco, não seria como um postal solarengo de uma história, já que não me parece que o livro fosse isso”, explicou Steve Zaillian em entrevista ao site CNET. “Queria filmar em Itália no inverno para obter esta espécie de sensação sombria de filme noir. O preto e branco prestava-se a isso.”

Em todas as cenas, a câmara está fixa e também há uma explicação. “Queria que fosse possível parar em qualquer frame e dizer: ‘Sim, é uma bela fotografia ou um belo quadro.’”, disse o realizador e criador de Ripley.

Também a vida da Patricia Highsmith foi pouco colorida. Começou mal ainda antes de nascer, a 19 de janeiro de 1921, no Texas. Os pais divorciaram-se dias antes. Do pai, com quem esteve apenas uma dúzia de vezes ao longo da vida, nem o nome Plangman guardou. Adotou Highsmith, do padrasto, mas também esse casamento da mãe foi tumultuoso — mãe com quem teve sempre uma relação de amor-ódio e que chegou a dizer a Patricia que tinha tentado abortar. Deixou-a a viver em casa da avó durante um ano sem qualquer explicação.

De volta a Nova Iorque e a casa da mãe, estudou inglês, escrita de peças de teatro e contos em prosa na faculdade. Candidatou-se a publicações como Vogue, Harper’s Bazaar, Time ou The New Yorker. Não foi aceite em nenhuma. Chegou a trabalhar numa agência publicitária até fazer o retiro Yaddo, famoso no meio artístico, onde conseguiu uma vaga graças à recomendação de Truman Capote.

Era alcoólica, passou por vários períodos de depressão, teve anorexia nervosa e um cancro do pulmão. Apesar da popularidade dos livros, de até hoje ser considerada na linguagem literária que aprofundou, pessoalmente foi muitas vezes descrita como cruel, má, implacável e hostil. Semelhanças com o seu protagonista mais famoso? A resposta foi dada pela própria: “Nenhum livro foi mais fácil de escrever para mim [do que O Talentoso Mr. Ripley] e muitas vezes tinha a sensação de que o Ripley estava a escrevê-lo e eu estava meramente a datilografar”, explicou em Plotting and Writing Suspense Fiction, de 1983. De acordo com um dos biógrafos de Patricia Highsmith, Andrew Wilson, a escritora terminava por vezes as próprias cartas assinando “com amor do Tom”.

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“Escolho viver sozinha porque a minha imaginação funciona melhor se não tiver de falar com pessoas”, admitiu Patricia Higsmith

Sygma via Getty Images

Sentindo-se sempre à margem — na família, que nunca lhe deu realmente amor, ou na sua vida sexual, em que durante anos tentou esconder e lutar contra a homosexualidade —, Highsmith transpôs para Tom Ripley esses mesmos sentimentos de injustiça e raiva, ansiando por vingança sobre todos por quem se sentiu rejeitada ou mal-tratada.

Escreveu 22 romances e oito livros de contos. Manteve diários até ao fim, tendo deixado mais de oito mil páginas escritas à mão. Preferia a companhia de animais a pessoas. Na casa de Suffolk, Inglaterra, tinha uma criação de cerca de 300 caracóis, uma obsessão que se manifestava até em festas, para onde levava os bichos dentro da própria carteira juntamente com uma folha de alface. “Escolho viver sozinha porque a minha imaginação funciona melhor se não tiver de falar com pessoas”, admitiu.

Conviver com ela era difícil. As excentricidades depressa passavam o limite do aceitável — pegava fogo ao próprio cabelo em jantares com amigos e chegou a atirar um rato a um convidado. Além disso, não escondia que odiava minorias, incluindo judeus.

Morreu em 1995, aos 74 anos, na Suíça, onde vivia desde 1982. Deixou a fortuna, avaliada em quase três milhões de euros, e futuros royalties relativos às suas obras, à colónia Yaddo, onde tinha passado dois meses em 1948 a escrever a primeira versão de O Desconhecido do Norte Expresso, aquele que viria a ser o seu primeiro romance.

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