As sucessivas sequelas e novas produções existência dos super-heróis talvez nos tenha convencido de que todo o elenco de “Os Vingadores” foi bem escolhido. O humor de Robert Downey Jr. serve bem o Homem de Ferro, Chris Evans tem aquela naturalidade de all american boy que faz sentido com o Capitão América, Chris Hemsworth carrega o exotismo suficiente para poder ser um deus de outro planeta e Scarlett Johansson é misteriosa, como a Viúva Negra deve ser. No meio de tudo isto, pouco se fala na banalidade que Jeremy Renner transparece, ele que interpreta o Gavião Arqueiro, ou Hawkeye, no original. É esta personagem que tem agora uma novíssima série, integrada no Universo Cinematográfico da Marvel. Estreia-se, com dois episódios, esta quarta-feira, dia 24 de novembro, no Disney+ e terminará ainda antes do Natal, a 22 de dezembro. Mas a pergunta é: a série consegue resgatar este herói da tal aparente banalidade? Ou é suposto que assim seja?
“Ele fez a escolha de ser um Vingador. Não lhe deram superpoderes, a única coisa que tem é um grande talento. Isso diz muito sobre ele, algo que se calhar nem o próprio entende. E ao longo dos filmes vimo-lo a ter empatia com a Wanda ou a Viúva Negra… parte da série passa por ele perceber porque é que é assim.” Quem o diz é Rhys Thomas, realizador dos três primeiros episódios e responsável pela supervisão do resto da primeira temporada de “Hawkeye”, durante uma entrevista via Zoom. Caro leitor, não entenda a “banalidade” de que aqui falamos como uma coisa má. Neste caso, a expressão aplica-se a uma ideia de “maior proximidade com o comum mortal” no universo de super-heróis e deuses. Porque o Gavião Arqueiro é também Clint Barton, um homem de família. E é nesta dimensão que a série mais se concentra.
[o trailer de “Hawkeye”:]
A ação de “Hawkeye” decorre durante o Natal: “É uma altura divertida do ano, tem um tom especial que adoro. Sou um grande fã de ficção que acontece neste ambiente, o espírito natalício sabe lidar bem com o caos e a ação. É um ótimo tema para se trabalhar.” E é também uma ótima altura para contar histórias familiares, “o espírito natalício adensa isso”, completa Rhys Thomas. Clint Barton/Gavião Arqueiro não vai às compras de Natal. Aliás, ele assume um papel quase secundário na série, graças a Kate Bishop, que se tornará uma protegida de Barton e vestirá as roupas do Arqueiro no futuro. Bishop é interpretada por Hailee Steinfeld e não vale a pena ir com falinhas mansas: ela rouba todo o protagonismo.
Poderia ser apenas uma sidekick nesta viagem. Colocar-se na ideia de protegida e crescer ao longo da série, mas não. Steinfeld veste a personagem com naturalidade. Bishop é filha de uma família rica de Nova Iorque, decide seguir carreira no arco e flecha quando vê o Gavião Arqueiro em ação durante a invasão a Nova Iorque no primeiro filme de “Os Vingadores”. Obviamente que se torna fenomenal no que faz, obviamente que na primeira oportunidade que tem, mete-se em sarilhos. E são esses sarilhos que chamam a atenção do Gavião Arqueiro original, são esses sarilhos que promovem o encontro entre ambos.
E assim começa uma inesperada história de Natal. Entre um super-herói e uma fã devota: “Ela tem muitas qualidades. Ela é entusiasta e a maior fã dele. Mas, ao mesmo tempo, ela tem uma empatia e vulnerabilidade que afeta o Clint. É um limbo difícil de trabalhar, entre ser chata por ser tão entusiasta e ser só uma pessoa muito entusiasmada, mas a Hailee é absolutamente convincente nesse papel. É difícil imaginar alguém melhor para desempenhar.” Rhys Thomas fala das suas personagens quase como se formassem uma espécie de família secundária, como se tivesse descoberto a fórmula perfeita para elas se conhecerem.
Se 2020 foi particularmente danoso para a Marvel, com o adiamento de alguns filmes importantes para a estratégia da empresa e a reconfiguração do plano conjunto entre cinema e televisão, 2021 tem sido o ano zero dessa renovada estratégia, com a confirmação de que o Universo Cinematográfico Marvel estava pronto para conquistar o streaming e o pequeno ecrã. Se o ano começou com a ode à televisão clássica – especialmente a comédia – que é “Wandavision”, ele termina com uma série que usa e abusa dos clichés do Natal na ficção audiovisual das últimas três décadas.
A banalidade de Jeremy Renner é a do herói que existe em cada um de nós, ou pelo menos é isso que a série nos quer oferecer: “Ele é a personagem mais fácil de nos relacionarmos. Tem uma vida banal em casa. Isso dá-lhe algo na sua vida privada que as outras personagens [dos Vingadores, com os seus superpoderes] não têm. Sabemos o que ele está realmente a proteger e para onde ele quer ir.” O Gavião é então a personagem que tem de resolver um problema antes do Natal (na cidade onde todos nos relacionamos enquanto espectadores, Nova Iorque) e que, em simultâneo, tem de chegar a tempo para o celebrar em família. É algo absolutamente relacionável, mesmo que “o problema” seja comprar um bolo-rei.
Um herói que tem de salvar o Natal, o seu e o da sua protegida. Hailee Steinfeld salta da Apple TV+ – “Dickinson” – para a Marvel e assume-se rapidamente como uma das personagens mais próximas do espectador que existem atualmente neste universo da ficção televisiva. É a Florence Pugh – que surgirá como Viúva Negra mais para a frente nos episódios – desta série, uma prova de que a Marvel continua a encontrar atores para dar vida a continuadas versões de personagens do seu universo com qualidades que a médio prazo superarão a dos originais (ou assim parece, a ver vamos se se confirma). Teremos saudades da banalidade do Gavião Arqueiro original, mas a versão de Steinfeld tem uma coragem jovem, irreverência e humor que já começava a faltar ao primeiro lote de Os Vingadores.