“É um tema delicado. Falámos com a equipa porque gostamos muito dele, fomos muito bem tratados por ele. Deixou-nos um legado muito bom. Tudo isto apanhou-nos de surpresa. É a justiça que tem de ditar. Não tenha informação de que tenha feito algo assim aqui. Foi meu treinador aqui e não tenho nenhuma suspeita. Estou surpreendido e afetado. Não posso dizer mais nada. Que a justiça faça o seu trabalho”.

Muitas personalidades ligadas ao Barcelona têm recusado falar publicamente do caso que assolou o clube, mais concretamente La Masia. Uns ainda falam sob anonimato, a maioria não quer falar. Xavi Hernández, antigo capitão que trocou o Qatar pelo resgate da identidade desportiva do seu clube enquanto treinador, voltou a dar a cara mas nem ele consegue encontrar muitas palavras para falar sobre o que se passou. Fala de si, fala do que sabe, deixa que a justiça fale no resto. Tudo num tom comovido. Emocionado. 

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No caso que está a abalar o futebol espanhol, pela história e por um dos nomes em causa, Albert Benaiges, antigo coordenador da formação do Barcelona, surgiu numa longa reportagem feita pelo Diari ARA como um dos envolvidos em casos de abusos sexuais de menores, com múltiplos relatos nos anos 80 e 90 quando era professor de Educação Física numa escola no bairro Les Corts, em Barcelona. Este sábado, o El País avançou com os Mossos d’Esquadra estão a investigar pelo menos uma denúncia por abuso sexual do ex-responsável dos blaugrana, também ligado à escola onde lecionava. Um porta voz das autoridades admitiu ainda que, “nos próximos dias”, mais denúncias e queixas sejam apresentadas contra Benaiges.

“Aquilo não era normal. O tema do Benaiges era um segredo para vocês mas sempre que havia reuniões de antigos alunos era algo que aparecia sempre. O comportamento dele não era adequado. Éramos pequenos, tínhamos medo e recordo que ficava a olhar para nós enquanto tomávamos banho”, contou ao El País Dani, hoje com quase 40 anos, na altura aluno da escola em causa, acrescentando que, quando os seus pais foram ter com a direção da escola, dizendo que Albert Benaiges tinha arrastado por uma orelha o filho pelo ginásio e insultado à frente de todos os outros colegas, os responsáveis acusaram-no de mentir.

Fora do Barcelona há nove dias, depois de ter apresentado a demissão por “motivos pessoais”, Benaiges teve um passado de duas décadas no clube, sempre na formação, entre 1991 e 2011. Foi ele por exemplo que descobriu jovens talentos como Andrés Iniesta, um dos jogadores mais marcantes da história recente dos catalães e do futebol espanhol. O antigo responsável pelas camadas jovens, que foi ocupando vários cargos ao longo desse período, passou depois por Emirados Árabes Unidos, México, República Dominicana e Japão nos últimos anos, como treinador e coordenador de equipa de formação, tendo voltado a La Masia em abril para coordenar todo o futebol de formação com Joan Laporta até ao início do mês.

Pouco mais de uma semana depois dessa demissão, o Diari ARA publicou o trabalho que originou todo o caso, onde surgem relatos de parte das 60 alegadas vítimas de abusos sexuais na escola de Barcelona, no bairro de Les Corts, num texto que começa com uma frase do próprio Benaiges para uma dessas pessoas contactadas dita há apenas alguns meses: “Nem tudo o que acontece precisa ser explicado”. “Ao longo de mais de 20 anos, repetiu o abuso e assédio de rapazes e raparigas de diferentes gerações. Foi um padrão de conduta que a ARA confirmou com cerca de 60 testemunhas. Masturbava-se ao lado de rapazes de 13 anos, assistia a filmes pornográficos, fazia sexo e brincava, em situações que aconteceram nos balneários da escola, no ginásio, em casa e nos acampamentos. Pelo menos quatro alunos descreveram essas situações como um trauma. Benaiges nega abusos mas admite que “não repetiria nada do que fez nessa altura”.

“Nunca abusei de ninguém e se alguma vez isso possa ter acontecido não foi de forma intencional. A minha consciência está limpa, nunca forcei ninguém a nada e já denunciei pedófilos”, acrescentou.

“Saí da sala de jantar e já estava lá. Levava-nos para o ginásio, onde faziam as brincadeiras de beliscar as cuecas, a brincadeira de apertar o apito…”, contou uma das testemunhas. Outra das histórias contadas ocorreu mais tarde, quando levou um grupo de rapazes para sua casa dizendo que ia apenas buscar troféus e passou por um clube de vídeo para trazer filmes pornográficos. “Ele masturbava-se a ver isso e houve toques”, advoga, explicando que o facto de trabalhar também na formação do Barcelona e de levar de quando em vez jogadores à escola acabou por dar uma espécie de ascendência e confiança com os alunos.

“Ele deu algumas revistas pornográficas a um estudante para ele guardar durante uma viagem até Andorra. Quando um menor precisava de alguma chave, ele dizia-lhes para tirarem diretamente dos bolsos das suas calças, forçando-os a colocarem as mãos no seu interior. Mandou algumas crianças fazerem compras num quiosque da esquina e levarem-lhe as coisas ao seu balneário, onde as recebia completamente nu. Ia ao balneário masculino descrever o que via quando entrava no balneário feminino, cheio de meninas. Quando alguém se mostrava relutante em tomar banho com o restante grupo de colegas, ele baixava as cuecas e perguntava: ‘Estás com vergonha disto?'”, são outros dos relatos da extensa reportagem.

Entre um total de cerca de 100 pessoas que foram ouvidas, encontram-se também situações de entradas nos balneários femininos “como se fossem seus” tocando em raparigas que passavam nuas, medição do pulso de formas inapropriadas e um caso de uma jovem que disse que não poderia correr porque na altura não tinha soutien e que o próprio quis verificar. As histórias contadas por dezenas e dezenas de vítimas e testemunhas multiplicam-se, sempre com esse ponto comum de apontarem o dedo à direção da escola por nunca ter feito nada. As pessoas do Barcelona contactadas, alguns também eles antigos alunos da mesma escola, não quiseram fazer comentários mas negaram qualquer abuso ou episódio.

Certo é que, nos próximos dias, deverão mesmo dar entrada mais queixas e denúncias num caso que está a chocar o futebol espanhol e o Barça em particular. E o Diari ARA adianta que a saída do Barcelona no início do mês não foi gerada por uma demissão por motivos pessoais mas sim um acordo que terá sido feito entre Benaiges e os responsáveis do clube catalão para colocar os papéis para uma reforma antecipada, numa conversa que terá acontecido um dia depois de a publicação ter questionado pela primeira vez o antigo coordenador com o caso e com as dezenas de testemunhos que entretanto já tinha recolhido.

“É evidente que, se soubéssemos da situação, nunca o teríamos contratado. Este senhor desvinculou-se do Barcelona por razões pessoais. Perante tudo aquilo que tem saído, estamos a complicar informações e, quando tivermos todas, iremos tomar uma posição em termos oficiais. Mas posso dizer que quem pretenda envolver o Barça em toda esta questão, o clube irá reagir com toda a contundência em defesa dos seus mais legítimos interesses”, comentou Joan Laporta, presidente do clube, à chegada a Pamplona, onde a equipa vai defrontar este domingo o Osasuna num jogo a contar para a Liga espanhola.