Não tenho grande interesse, e confesso que nunca terei, em ler os livros desse enigmático fenómeno editorial chamado Elena Ferrante. Mas diz-me alguém que jura por ela, leu “A Filha Perdida” e viu a adaptação ao cinema, realizada, em estreia, pela atriz Maggie Gyllenhaal, que o filme é prejudicado, quer na caracterização da personagem principal, Leda, uma professora universitária à beira dos 50 anos, quer no impacto dramático da narrativa, pela americanização desta e de outras personagens importantes da história (passada no verão, numa praia da Grécia, no livro como no filme), todas elas de Nápoles. A cidade onde supostamente Ferrante terá nascido ou vive desde muito pequena e se passam os seus livros mais importantes.

No filme, Leda (Olivia Colman) nasceu em Inglaterra, mas vive desde há muito nos EUA. E a numerosa, barulhenta e conflituosa família que irrompe na pequena praia grega que ela escolheu para umas férias sozinha com os seus livros, é americana de origem grega. Esta alteração pode ter sido feita por Gyllenhaal por razões meramente comerciais, ou de conveniência de produção. E a verdade é que, uma vez entrados na história de “A Filha Perdida” e familiarizados com as personagens, sentimos que há algo de especificamente nacional, mas também de natureza emocional, temperamental e social relacionado com o passado familiar de Leda, que se diluiu ou foi escamoteado.

[Veja o “trailer” de “A Filha Perdida”:]

Dito isto, “A Filha Perdida” é como que o cruzamento do retrato de uma mulher de meia idade de súbito assombrada pela evocação de acontecimentos do seu passado,  e de “thriller” sem crime, pessoa misteriosamente desaparecida ou cadáver. Embora haja uma boneca perdida que tem um papel central na narrativa. Leda está calmamente na praia de uma ilha grega onde alugou um apartamento, quando o seu sossego é interrompido pela chegada de uma grande, incómoda e hiperativa família greco-americana de Queens. Ela começa por ter uma situação de conflito com os seus membros, mas as tréguas são feitas por Callie (Dagmara Dominczyk), que está grávida e trava amizade com Leda.

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[Veja uma entrevista com Maggie Gyllenhaal:]

Pela conversa entre ambas ficamos a saber que Leda, uma ilustre professora de Literatura Comparada, tem duas filhas, ambas já na casa dos 20 anos, e que estará separada do marido, com o qual aquelas ficaram nos EUA. Da família greco-americana faz também parte a jovem Nina (Dakota Johnson), a cunhada mais nova de Callie, que tem uma filha pequena, Elena. E a proximidade entre Leda e o clã greco-americano torna-se ainda maior quando esta acha a menina, que uma manhã se perde do resto da família e todos a procuram em desespero.

[Veja uma entrevista com Olivia Colman:]

O enredo adensa-se quando o intenso misto de enlevo e de incómodo que Leda sente por Nina e pela relação desta com Elena, a mergulha nas suas recordações de mãe jovem a tentar criar duas filhas irrequietas e a singrar no mundo universitário, e a leva a cometer um ato impulsivo e estranho – e simbolicamente simplista — envolvendo a boneca que a pequena Elena perdeu, deixando-a inconsolável, a Nina numa permanente crise de nervos e ao resto da família em polvorosa. Há personagens masculinas na história, quer no presente, quer nos “flashbacks” para o passado de Leda, mas são secundárias, embora aquelas contribuam para o clima de crescente mal-estar na ilha: Lyle (Ed Harris), o senhorio americano de Leda, que ali vive há várias décadas, Will (Paul Mescal), um jovem estudante irlandês que trabalha na praia, e Toni (Oliver Jackson-Cohen), o ora afável, ora ameaçador marido de Nina.

[Ouça Dakota Johnson ler um excerto do livro:]

Sob esta complicação narrativa, e a atmosfera crescentemente pesada, de ambiguidade e inquietação psicológica, emocional e sexual que Maggie Gyllenhaal vai instalando entre as personagens, estão dois grandes temas, as escoras da história. A culpa e o remorso sentidos retroativamente por Leda por não ter sido a mulher exemplar, mas sobretudo uma mãe irrepreensível para as duas filhas; e o dilema da mulher que é mãe mas também quer ter uma carreira para que se sente vocacionada e em que sabe que pode ir longe. E que Gyllenhaal acaba por transformar numa litania algo cansativa. Mesmo que oblíqua e esquiva.

[Veja uma entrevista com Jessie Buckley:]

Maggie Gyllenhaal tem olho de cineasta e prefere a sugestão, o não-dito e o jogo dos atores para elaborar atmosferas e deixar que sejamos nós a adivinhar e preencher o que fica em branco ou em suspenso, em vez de explicar tudo em pormenor. Mas, tudo pesado, contado e medido, “A Filha Perdida” acaba por ser um filme menor do que a soma das suas partes, que faz uma grande complicação psicodramática em redor de lugares-comuns, tropos e figuras tipificadas do melodrama em modo feminino. É curioso, no entanto, sobretudo nestes tempos de feminismos radicais e anti-masculinos – e aqui está bem visível a impressão digital de Elena Ferrante – que a fita mostre como as mulheres podem ser biliosas, duras e implacáveis tanto para homens como entre si.

[Veja uma cena do filme:]

Olivia Colman é hoje uma daquelas atrizes que, o que quer que faça, nem que seja ler a lista telefónica, é coberta de elogios, mas faz-me lembrar uma sucessora menor e limitada da grande Glenda Jackson. A sua interpretação da amável e confusa, narcisista e brusca Leda, revela-se preciosa e rebuscada por trás da sua frugalidade introspetiva e intrigante. Já Jessie Buckley é muito boa na jovem e atarantada Leda, e Dakota Johnson faz uma Nina que personifica na perfeição o tipo de maternidade que Leda ao mesmo tempo admira e a enternece, mas de que também tem ressentimento e inveja. Nina pode ser “trashy”,  socialmente desajeitada e intelectualmente limitada, mas é a melhor mãe de “Uma Filha Perdida”.