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Como um profissional de tecnologias de informação pode ter decifrado uma parte do Código de Dickens

Este artigo tem mais de 2 anos

Charles Dickens intitulou a própria escrita como “do diabo”. Num desafio para traduzir um antigo manuscrito, só 16 concorrentes se aproximaram da solução: tudo parece ser sobre um anúncio recusado.

Charles Dickens
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A competição começou em outubro do último ano e deverá continuar a ser realizada por mais um ano

Getty Images

A competição começou em outubro do último ano e deverá continuar a ser realizada por mais um ano

Getty Images

Os manuscritos de Charles Dickens estão cheios de manchas de tinta, com um grafismo pouco legível, amontoado entre linhas rabiscadas e inclinadas. Ao difícil aspeto visual une-se o amor por uma taquigrafia — sistema muito rápido de escrita que usa abreviaturas especiais — datada de 1700, à qual o célebre escritor inglês acrescentou as suas próprias particularidades caóticas, que designou como “escrita do diabo”.

Aproveitou-se de hieróglifos para economizar tempo nas anotações, resmas das quais queimou. Dez manuscritos que sobreviveram atormentam especialistas há mais de um século por parecem indecifráveis: intitularam esse conjunto arcaico de Código Dickens, numa tentativa de pedir ajuda a detetives amadores e fãs.

Em outubro do ano passado, a competição estava lançada com um prémio no valor de 300 libras (cerca de 354 euros) e a tarefa era só uma: transcrever uma misteriosa e desconcertante carta, que está guardada numa biblioteca em Nova Iorque, e foi escrita com tinta azul em papel timbrado na Casa Tavistock, residência londrina onde Dickens escreveu “Bleak House” (“A Casa Sombria”, em português).

O documento foi descarregado milhares de vezes por vários pontos do globo. Todavia, no fim, apenas 16 pessoas foram capazes de apresentar soluções, e nenhuma delas conseguiu interpretar a totalidade do mistério.

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Os participantes foram aconselhados a usar guias de braquigrafia – técnica de escrever por abreviaturas – prática descrita no romance David Copperfield, do mesmo escritor, como um “mistério estenográfico selvagem”. Além disso, tiveram acesso a um caderno no qual Dickens explicava, com a típica ambiguidade, alguns dos símbolos que utilizava: “@” referia-se a “sobre” e um tipo angular de “t” significaria “extraordinário”.

Quase 165 anos depois, a carta de Tavistock foi despedaçada e analisada incansavelmente por vários amantes de códigos, tais como um estudante de 20 anos de Ohio, chamado Ken Cox. É “alucinante”existir algo “que ele escreveu e que ninguém ainda tenha lido”, ao The Guardian.

O prémio de 300 libras foi bater às mãos de Shane Baggs, um profissional de tecnologias de informação da Califórnia, que pressentiu que estava “no caminho certo” no momento da entrega dos seus palpites. “Depois de obter maioritariamente notas C em literatura”, brinca o vencedor, “nunca sonhei que algo que eu fizesse seria do interesse dos estudiosos de Dickens”. Desvendou, entre outras, as palavras “inverídico e injusto”.

“Os descodificadores ajudaram realmente a esclarecer este período conturbado da vida de Dickens”, admitiu Claire Wood, professora de Literatura Vitoriana na Universidade de Leicester, líder deste projeto juntamente com Hugo Bowles, professor de inglês da Universidade de Foggia, em Itália. O par tem agora uma transcrição que está 70% completa.

Mas, afinal, o que diz a enigmática carta?

Primeiramente, não são notas ou parte de um conto perdido — embora se julgue que alguns dos artefactos possam incluir ficção. É, sim, o relato na primeira pessoa de uma encruzilhada na vida amorosa e na carreira literária de Dickens.

“Sinto-me obrigado”, começa a carta, “embora com muita relutância, faço-te um apelo pessoal”. A partir daqui, começou o desbravar caminho da decifração: houve quem deduzisse que a sigla “HW” referia-se a Household Words, uma publicação periódica editada por Dickens e co-propriedade da editora Bradbury and Evans.

Noutra referência, houve quem associasse a palavra “round” a All the Year Round, um novo jornal fundado por Dickens em 1859, após uma zanga com a Bradbury and Evans. E mais: houve quem traduzisse dois rabiscos como “Festa da Ascensão”, festa cristã que ocorre 40 dias após a Páscoa. Esta descoberta fascinou os líderes da iniciativa, já que esta festividade coincidiu com a altura em que Dickens estava a tentar incorporar Households Words no All the Year Round.

Juntando todas estas pistas, criou-se uma relação com uma outra carta já conhecida, aquela em que o gerente do Times pede desculpas a Dickens por causa do pedido rejeitado do escritor para colocar um anúncio com o propósito de alertar os já existentes e potenciais novos leitores para o novo jornal criado — o All the Year Round. Nela, é mencionada outra carta, uma em que Dickens terá escrito a John Thadeus Delane, editor do Times. Até agora, acreditava-se que esta carta estava perdida, mas não, no final de contas, é precisamente a carta de Tavistock.

Charles Dickens

Getty Images

Então, há-que entender as circunstâncias que envolveram Dickens em 1859: com 47 anos, estava a conquistar fama com os romances “A Casa Sombria” e “David Copperfield”. Um ano antes, e com 10 filhos por criar, o seu casamento desmoronou por causa de rumores obscenos sobre um suposto caso com uma atriz e, aí, Dickens publicou uma declaração furiosa no Household Words, descrevendo os boatos como “os mais grosseiramente falsos, os mais monstruosos e os mais cruéis”. Foi também nesta altura que a sua relação com a Bradbury and Evans se desfez e a editora recusou uma oferta de Dickens para comprar a sua quota parte da revista.

Como consequência desta disputa, Dickens criou o seu próprio jornal. Foi um movimento com sucesso, porém arriscado, porque o escritor estava com problemas financeiros e Household Words, lançado em 1850, era uma fonte vital de rendimento e uma montra para o seu trabalho.

Dickens queria segurar os seus leitores, planos opostos aos da editora, que ambicionava manter a Household Words viva sem ele – e processaram-no para evitar que desse a impressão de que a publicação estava a fechar portas. Para sorte do escritor, um juiz decidiu a seu favor: sim, ele podia anunciar a saída, desde que dissesse que Household Words estava a ser “abandonada por ele” e não pela editora.

Era esta frase que Dickens queria que vingasse no anúncio destinado ao Times, no entanto um escriturário rejeitou-a. Sem saber da decisão legal, o funcionário sentiu que o anúncio dava a falsa impressão de que a Household Words estava realmente a encerrar. Foi “uma surpresa desagradável para Dickens”, carateriza Bowles.

A carta de Tavistock é, então, o esforço desesperado do escritor de corrigir o mal-entendido, apelando ao editor, um conhecido seu. Reveladas pelo The Guardian, as palavras dirigidas ao mesmo eram: “após o Festa da Ascensão, Household Words será abandonado por mim … foi recusado e enviado de volta com uma mensagem de que este detalhe era falso e injusto” e, referindo a decisão do juiz, não vê “sentido ou razão” para a recusa.

Seguiram-se, então, outras vitórias para Dickens: o Times pediu desculpa e readmitiu o anúncio; All the Year Round, lançado com a primeira parte de A Tale of Two Cities (História de Duas Cidades, em português), foi um sucesso; enquanto isto, uma maré de azar abalava Bradbury and Evans, que não conseguiu salvar Household Words. Quando leiloaram o título, Dickens arrematou-o por uma fração do preço que havia oferecido originalmente. E mais: acrescentou a linha “Com o que está incorporado no Household Words” à capa de All the Year Round.

A veia de negociador de Dickens surpreendeu quem o estuda há anos: Bowles explica que ele é “mordaz” sobre juízes, mas na carta elogia o juiz por ter decidido a seu favor. Mas a ostentação da vitória, alerta Wood, realça a sua vulnerabilidade, já que Dickens estava a sentir “pressões familiares e profissionais”, enquanto tentava coordenar tudo à sua volta.

O projeto Dickens Code, que é financiado pelo Conselho de Investigação em Artes e Humanidades do governo, será realizado por mais um ano. Wood e Bowles querem aumentar o leque de investigadores para ajudar a transcrever mais documentos, alguns mais confusos do que a carta de Tavistock e, talvez, encontrar “uma história de Dickens nunca antes ouvida”, ambiciona Bowles.

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