Não é a primeira vez que o primeiro-ministro do Peru, Aníbal Torres, usa o nome de Adolf Hitler para defender a sua posição. Mesmo assim, provocou esta quinta-feira uma onda de repúdio ao mencionar como modelo a ser seguido o programa de construção de autoestradas do ditador na Alemanha nazi.

A Itália, a Alemanha, eram como nós, mas numa ocasião Adolf Hitler visitou o norte de Itália e Mussolini mostrou-lhe uma autoestrada construída de Milão a Brescia. Hitler viu aquilo, voltou para o seu país e encheu-o de autoestradas, de aeroportos, e transformou a Alemanha na primeira potência económica do mundo“, afirmou, enquanto discursava no início do IV Conselho de Ministros Descentralizado, que decorreu esta quinta-feira na cidade andina de Huancayo.

Sublinhando que “sem infraestruturas, o país não pode desenvolver-se”, Torres vincou que “as vias de comunicação são como as veias e artérias no ser humano”. Por essa razão, disse às autoridades locais e aos membros do executivo que têm que esforçar-se e “fazer sacrifícios para melhorar” o sistema circulatório peruano.

De 1933 — quando Hitler iniciou a construção de autoestradas — a 1941 — quando as obras foram paralisadas por causa da Segunda Guerra Mundial — quase 4.000 quilómetros de “Autobahnen” (“autoestradas”, em alemão) tinham sido construídas. Apesar de já existirem rodovias na Alemanha antes, os nazis deram destaque às mesmas na sua propaganda como um símbolo da grandeza do Terceiro Reich.

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A (polémica) declaração, que mereceu a condenação de vários quadrantes, surge na semana em que o país registou protestos, pilhagens, confrontos violentos com a polícia, que resultaram em numerosos feridos, devido aos altos preços dos combustíveis e às novas regulamentações de transporte.

Um manifestante morto e vários feridos em confrontos com a polícia no Peru

Entre as reações de reprovação, a embaixada de Israel lamentou que “o discurso político peruano inclua referências a Hitler e Mussolini como exemplo de prosperidade. Regimes de morte e terror não podem ser uma demonstração de progresso”. Na publicação da missão diplomática israelita lê-se ainda: “Hitler foi responsável pela morte de seis milhões de judeus, enaltecê-lo é uma ofensa às vítimas dessa tragédia mundial”.

Torres, também advogado de 79 anos, no encerramento da sessão do gabinete e na presença de Pedro Castillo, garantiu que as suas palavras foram mal interpretadas. “Se demos como exemplo do progresso da Alemanha nas vias de comunicação é um facto real. Isso não quer dizer que Adolf Hitler não seja considerado um grande criminoso“.

Pediu ainda desculpa ao embaixador Asaf Ichilevich: “Ao senhor embaixador de Israel, se o ofendi peço desculpas e vamos conversar pessoalmente”.

Por seu turno, a embaixada da Alemanha, em comunicado, condenou a menção ao “ditador fascista e genocida” referindo que pelo seu nome foi travada, a partir da Alemanha, a pior guerra de todos os tempos, e se cometeu o genocídio de seis milhões de judeus. Perante este cenário, Hitler não é referência certa como exemplo de qualquer género”.

“A seriedade destas expressões não merece explicações ou meias desculpas”, considerou a Associação Judaica do Peru, numa curta mensagem, citada pelo The Guardian.

O legislador Ed Málaga, que viveu na Alemanha durante 21 anos, escreveu uma carta aberta ao primeiro-ministro do Peru exigindo que o próprio pedisse desculpas ao povo alemão. “A crise política com este governo chegou a um ponto sem retorno”, afirmou Málaga, do Partido Morado, cita-o o mesmo jornal britânico.

Já a chefe do Congresso peruano, María del Carmen Alva, escreveu no Twitter que “o que foi dito pelo primeiro-ministro Aníbal Torres, elogiando o genocida Hitler, ofendeu milhares de peruanos”. Exigiu igualmente “bom senso” do executivo.

Para o deputado Alex Flores, este caso é “uma vergonha”“Agora entendemos de onde provêm as medidas erróneas [do governo] como o frustrado recolhimento obrigatório” diurno decretado em Lima na terça-feira, ressaltou na mesma rede social.

E, sim, tal como escrito no início, não é uma referência inédita. O chefe do Governo peruano já a 18 de março se referira a Hitler, comparando-o com o ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000), após a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional de repor o indulto concedido ao antigo chefe de Estado em 2017, uma medida suspensa por decisão do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos.

“Há que reconhecer os seus feitos [de Fujimori], mas dou-vos como exemplo a Alemanha. Não foi Hitler quem transformou a Alemanha em potência mundial? Foi ele, mas foi condenado não apenas pelos alemães, depois, mas por todo o mundo, pelos grandes crimes que cometeu”, destacou Torres na altura.