Instinto (publicado pela Suma de Letras), romance da canadiana Ashley Audrain, conta a história de uma mãe com sérias dúvidas sobre as intenções da sua primeira filha e a crença na sua culpa (contra tudo, contra todos). Contudo, a ideia mais forte ao longo das páginas é a constante presença de dúvida: será que o cansaço de ser mãe versus a constante sensação de não ser a mãe ideal (por oposição às outras mães, de como elas falam da maternidade) deturpa a visão e o próprio instinto maternal da protagonista? Mesmo perante factos, é uma dúvida sempre presente no diálogo entre a narradora e o leitor. “The Baby”, série britânica entre a comédia e o horror, criada por Lucy Gaymer e Siân Robins-Grace, coloca essa questão noutro campeonato. Ao longo de oito episódios há sempre a questão: será aquele bebé um filho do diabo ou uma criação da exaustão maternal, ainda hoje negligenciada pela sociedade? Os oitos episódios da série da HBO Max não respondem a isso, mas são um belíssimo trabalho em volta disso.

Se a perceção sobre a intenção da série não é imediata, há uma cena em que se faz questão de o tornar mais óbvio. Acontece sem ser um exercício de explicação informal, mas para ostensivamente constatar o que a narrativa tem como essencial: que na família e na sociedade se tende a negligenciar o incontornável cansaço. O momento é delicioso, a protagonista, Natasha (Michelle de Swarte), cruza-se com uma amiga num centro de diversão para crianças. Tudo é imensamente alto, tudo é imensamente colorido, tudo é imensamente imenso de propósito para ocupar qualquer outra sensação que quem está lá dentro possa ter: um sítio de excitação, um sítio onde se esquece tudo o resto. As crianças estão mega excitadas, as mães sorriem de amarelo perante as rotinas decoradas sobre o que se passa ali dentro. Inicialmente, parece tudo bem, mas à medida que corre algum tempo naquele centro de diversão e as mães falam, ouvem-se histórias de uma exaustão que drena a energia e o tempo das suas vidas, o modo de como estão presas às suas relações e em casa não são ouvidas.

[o trailer de “The Baby”:]

“The Baby” é muito assim, em vários momentos: nem tudo o que parece é. Uma série de comédia que usa o horror como justificação da sua mensagem. Ou uma série de terror com um dedo na comédia para aliviar tensões ou o desconforto que possa existir. A série arranca com três amigas a jogar póquer. Natasha, a anfitriã, irrita-se muito rapidamente quando percebe que o bebé de Mags (Shvorne Marks) lhe irá estragar a noite, que a atenção de um bebé vence a reunião habitual das três amigas. Perde o controlo quando a outra amiga, Rita (Isy Suttie), confessa que está grávida. Em momentos percebe-se que Natasha não quer uma criança na sua vida. Azar do azares, cai-lhe uma diretamente nos braços.

Depois da discussão com as amigas, decide tirar uns dias fora de Londres e vai para uma casa passar uns dias. Sem contar detalhes, um bebé cai-lhe nos braços. Ao longo do primeiro e segundo episódio vão-se percebendo várias coisas. Natasha tenta livrar-se do bebé de diversas formas, sem sucesso. À medida que o tempo passa, há uma espécie de instinto maternal que se apodera de Natasha, misturado com a sensação de que o resto do mundo – até as suas amigas – parecem aceitar com a maior das normalidades que tem um bebé, como se sempre o tivesse tido, como se tivesse sido sempre assim. E também descobrimos que Natasha não é a primeira – nem a segunda ou terceira – pessoa a quem este bebé cai nas mãos. É um bebé que tem caído nas mãos de diferentes mulheres, ao longo dos tempos, e que lhes tem infernizado a vida. Em última instância, mata-as. Porquê? A primeira perceção é de que é a sua defesa da rejeição pela qual passa. Mais à frente na série perceber-se-á que é por outras razões.

Também à medida que a série se desenvolve, “The Baby” abre-se além da história de maternidade (e do bebé maléfico, claro). Vira uma história sobre outros silêncios que existem na construção de uma relação e, sobretudo, sobre a opressão em cima das mulheres. As entrelinhas de “The Baby” são deliciosas, pegar na ideia de cuidar de um bebé e transformá-la desta maneira é daquelas coisas raras na televisão dos dias hoje, sobretudo nos tempos de streaming, onde quase tudo é afagado e limpo para enfiar tudo em géneros concretos. “The Baby” ultrapassa o horror e a comédia, é uma ótima metáfora sobre o maior do cansaços do quotidiano.

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