Em finais de abril de 2019, o Universo Cinematográfico da Marvel [UCM] atingiu um pico. “Vingadores: Endgame” foi um fechar de um ciclo, um filme que encerrava as portas a muitas personagens e atores que estiveram com os espectadores ao longo de uma década. Em simultâneo, dava espaço para outros se chegarem à frente, outros que já existiam no mesmo Universo ou que estariam por chegar (fora os que vão continuar a fazê-lo). Após “Endgame”, entrar-se-ia na chamada “quarta fase” do UCM com o filme “Viúva Negra”. A pandemia estragou os planos, 2020 foi um ano de silêncio e serviu para repensar a estratégia. O plano arrancou verdadeiramente em 2021, mas quando o fez foi com séries e não através de filmes. Um ano e meio após a estreia de “Wandavision” na plataforma de streaming Disney+, o balanço não é necessariamente positivo. “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, filme que se estreia esta semana, pretende mudar isso.
Eis a essência desta crise: atualmente falta uma figura de proa para as produções da Marvel. As séries têm feito o trabalho que lhes corresponde, sobretudo o de preparar terreno para próximos filmes e pequenas variações no Universo. Agora, com esta estreia, acontece a primeira real consequência deste trabalho. Numa conferência de imprensa que decorreu há dias, Kevin Feige – um dos cérebros e produtores com muita responsabilidade no UCM — relembrou de que quando isto tudo começou, em 2000 — com o primeiro filme da série dedicada aos X-Men, ainda distante das ambições do UCM como o conhecemos hoje — ele era “era um produtor novo que tinha a sorte de estar com ‘ele’ na mesma sala. Agora, sou um produtor velho que se sente, à mesma, com sorte por estar com ‘ele’ na sala.” Ele é Sam Raimi, o padrinho dos filmes modernos de super-heróis e que realizou este “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”. Entrou ainda antes de “Universo Cinematográfico da Marvel” fazer parte do nosso léxico, como realizador da trilogia original de “Homem-Aranha” (2002-2007). Saiu do jogo dos super-heróis, regressa agora. “É surreal, estar novamente com o Sam Raimi é como voltar às origens”, completa Feige.
[o trailer de “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”:]
Sam Raimi brinca com a situação. Brinca com o regresso, mas também faz referência à pandemia. Diz: “A tecnologia mudou e agora tudo é mais fácil. A maior mudança tecnológica foi o Zoom, foi ótimo falar com imensas pessoas ao mesmo tempo. Facilitou muito a comunicação e podia estar a falar com cem pessoas ao mesmo tempo. O que não mudou foi a possibilidade de ter grandes atores, aqueles que sabem que para se ser um grande super-herói é preciso, primeiro, ser-se humano. Especialmente aqui, o Multiverso é um espelho em que as personagens conhecem versões deles próprios. Os atores só têm de fazer uma pequena variação para serem uma outra versão deles totalmente diferente.”
As fases do Universo Cinematográfico da Marvel
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- Fase 1: Entre o primeiro “Homem-de-Ferro” (2008) e o primeiro filme da saga “Avengers”, de 2012
- Fase 2: Do terceiro (e último) “Homem-de-Ferro” (2013) até à estreia de “Ant Man” no cinema, em 2015
- Fase 3: A partir de “Captain America: Civil War” (2016) e até “Homem-Aranha: Longe de Casa” (2019)
- Fase 4: Desde a série “Black Widow” (julho de 2021) até ao presente
O Multiverso é um conceito que surgiu nos livros da Marvel no início da década de 1970. No UCM, o assunto foi discutido durante a Fase Três e surgiu em grande num dos seus mais recentes filmes, “Homem-Aranha: Sem Volta a Casa”, onde o Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) fez uma aparição. E o que é o Multiverso? Como o nome indica, não se vive apenas num universo, mas numa multitude deles, onde existem diferentes variações de cada um de nós, cada uma com um percurso distinto. Em “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” esses diferentes universos encontram-se, o Doutor Estranho que conhecemos encontra múltiplos outros Doutor Estranho. Nem todos particularmente simpáticos.
Eis a vontade deste novo filme: fazer do protagonista a figura de proa das produções da Marvel. Transformá-lo num líder. As séries de televisão podem andar a preparar caminho para o futuro, mas não é o local onde a real ação se passa. Essa é – e assim continuará a ser no futuro próximo – no cinema, nos filmes. Mas isso não quer dizer que não se aprenda algo com as séries, que estas não contribuam para o desenrolar da história. Bem pelo contrário. E, por isso, em “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” vai buscar-se a personagem que melhor cresceu numa série que lhe foi dedicada, Wanda, ou melhor, a Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), que já teve uma presença assinalável nos filmes da Marvel, mas cuja existência em “Wandavision” (disponível na Disney+) lhe deu uma outra dimensão. Diz Olsen: “Com ‘Wandavision’ pude fazer a personagem crescer. Antes, Wanda estava muito ligada a sentimentos como o amor, a perda, o luto. Mas com a série ela pode aceitar a mulher mítica que é, aceitou o seu destino. Agora é uma personagem muito mais clara.”
É com magia e feitiçaria que este universo cinematográfico irá para a frente. Num excerto do filme a que tivemos acesso, vê-se o Doutor Estranho a pedir ajuda à Feiticeira Escarlate para perceber como controlar uma ameaça que está a surgir no Multiverso, pouco depois de darmos caras com uma adolescente que tem o poder de viajar no Multiverso, America Chavez (Xochitl Gomez). Depois de mais de uma década em que os super-heróis eram puros e duros, é agora a vez da Marvel se entregar a outra realidade do fantástico: a da magia. Está o Doutor Estranho pronto para isso? “Ele é um outsider, não é um líder. E é isso que o torna interessante e conflituoso como herói. O Doutor Estranho é uma figura que gosta de estar omnipresente, e agora vamos perceber o custo disso, neste misterioso mundo de feitiçaria e magia. Neste filme vamos descobrir as suas falhas, mas também o seu potencial. Acima de tudo, é um exercício de reflexão, ele olhar-se ao espelho e perceber quem é: de que precisa de colaborar mais e não ter sempre a faca na mão e controlar tudo.”, diz Benedict Cumberbatch.
Continua: “Este Multiverso existe nas nossas vidas. No nosso consciente temos espaço para nos imaginarmos noutros sítios. O Multiverso é uma extrapolação disso. O Doutor Estranho conhece outras versões dele, mas que são ele: apenas escolheram outras opções com resultados diferentes. No fundo, é quase como terapia.” Com um Capitão América ausente e Os Vingadores desfeitos, a realidade do UCM é agora a de Doutor Estranho. Mas também a da Feiticeira Escarlate, a personagem que melhor soube crescer e afirmar-se nos filmes de “Os Vingadores”. Estará o espectador – o mais comum – preparado para um universo de magia e feitiçaria no Universo Cinematográfico da Marvel? “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” quer assumidamente concretizar essa vontade.