Está dado mais um passo para o que pode tornar-se um acordo histórico em França. O Partido Socialista está cada vez mais perto de integrar a versão francesa da geringonça, tendo já concluído um acordo com a Esquerda Insubmissa liderada por Jean-Luc Mélenchon, que será votado pelo Conselho Nacional do partido nas próximas horas — e o conteúdo do texto já está a gerar graves fricções entre os socialistas franceses.

O texto do documento já é conhecido — foi publicado na íntegra pela Esquerda Insubmissa — e contém cedências que barões do Partido Socialista francês consideram a morte das convicções do partido, uma vez que Mélenchon está numa posição bem mais favorável para negociar (foi o terceiro candidato mais votado nas eleições presidenciais de abril, com 22% dos votos; os socialistas conseguiram uns escassos 2,28%, praticamente desaparecendo do mapa).

Os pontos principais a destacar do acordo são os seguintes:

  • Aumento do salário mínimo para 1400 euros (atualmente ronda os 1300 euros líquidos);
  • Direito à reforma aos 60 anos (Emmanuel Macron defende 65 anos), dedicando “particular atenção” às carreiras mais longas;
  • Teto de preços para bens de primeira necessidade;
  • Reforço da representação dos trabalhadores nos conselhos de administração das empresas;
  • Revogação da chamada lei “El Khromi” e luta contra a “uberização do trabalho”. Trata-se de uma revisão da legislação laboral referida assim porque foi proposta pelo ministro do Trabalho de Manuel Valls, Myriam El Khomri, e aprovada em 2016, facilitando despedimentos e reduzindo os pagamentos por horas extra e por indemnizações.
  • Desenvolvimento dos serviços públicos e recusa da sua privatização ou abertura à concorrência, assim como criação de serviço público de creches;
  • Fiscalidade mais justa, incluindo com a revogação da flat tax
  • 1% do PIB para a Cultura

O objetivo do acordo, lê-se no mesmo documento, é “fazer eleger deputados na maior parte dos círculos” para poder “impedir Emmanuel Macron de continuar a sua política injusta e brutal e combater a extrema-direita”.

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Ou seja, se Mélenchon já tinha anunciado, assim que Macron foi reeleito Presidente com 58% dos votos, que as eleições legislativas de junho seriam na prática uma terceira volta das presidenciais, o objetivo desta geringonça à francesa passa a ser eleger Mélenchon como primeiro-ministro, tendo como prioridade contrariar as políticas de Macron.

A Nova União Popular Ecológica e Social — nome do acordo, que contará também com a participação do Partido Comunista francês, com Os Verdes e outras formações de esquerda, algumas com origens em dissidências do PS francês — tem assim como objetivo chegar à “maioria na Assembleia Nacional” e, “conforme a tradição republicana”, eleger assim o novo primeiro-ministro, que sairia do “maior grupo parlamentar da Assembleia”.

Juntas, estas forças poderiam conseguir, a avaliar pelas presidenciais, mais votos do que Macron teve sozinho — mas o contexto seria obviamente diferente. O acordo à esquerda poderia desagradar a eleitores dos vários partidos e as legislativas contam tradicionalmente com uma maior abstenção do que as presidenciais.

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As diferenças entre as forças que formarão esta frente de esquerda são, no entanto, históricas e inegáveis — e também por isso o acordo dedica mesmo um capítulo específico a uma espécie de declaração de princípios sobre as questões europeias e internacionais (aquelas em que os partidos portugueses, por exemplo, nunca se entenderam nem se comprometeram durante a fase da geringonça).

As divergências são assumidas logo à partida, quando se estabelece que os dois partidos “têm histórias diferentes na construção europeia”, mas um “objetivo comum”: “Colocar um fim ao caminho liberal e produtivista da União Europeia e construir um projeto novo ao serviço da ecologia e solidariedade”.

O acordo recorda que por causa da pandemia as regras orçamentais ficaram suspensas (e há quem defenda que, no contexto da guerra, assim deviam continuar em 2023), uma “brecha” que se abriu nas regras de Bruxelas e que deve ser aproveitada para conseguir “mudanças maiores”. Por isso, apesar das diferenças assumidas entre a Esquerda Insubmissa e o PS, a ideia é mesmo conseguir aplicar um “programa partilhado” e respeitar o mandato que os franceses quiserem dar a estas forças, se conseguirem mesmo a maioria no parlamento francês.

O acordo entre os dois partidos não só não foge à questão das tensões como se refere diretamente a elas: “A aplicação do nosso programa partilhado conduzirá necessariamente a tensões, ao constatar de contradições”. Por isso será preciso ultrapassar “bloqueios”, mas também “estarmos prontos para não respeitar algumas regras enquanto trabalhamos para as transformar”, em concreto regras europeias “económicas e orçamentais” ou a política agrícola comum.

Portugal chega, aliás, a ser usado como exemplo para justificar este ponto: “Não seremos os primeiros nem os últimos a fazê-lo, em França como na Europa: Espanha sobre os preços da energia, a Alemanha sobre a concorrência das empresas na água potável, Portugal sobre os aspetos económicos e orçamentais, etc). Fá-lo-emos respeitando o Estado de Direito e combatendo firmemente os ataques contra as liberdades fundamentais dos Governos de extrema-direita húngaro e polaco”.

Uma linha vermelha, possivelmente imposta pelos socialistas: como país fundador da União Europeia, a França assumirá as suas “responsabilidades nesse quadro” e não defenderá a saída da UE, nem a sua desagregação, nem o fim da moeda única; o objetivo será especificamente “modificar as regras e tratados europeus incompatíveis com a nossa ambição social e ecológica”.

Também fica estabelecida uma posição sobre a guerra: “Defendemos a soberania e liberdade da Ucrânia” contra as “atrocidades” de Vladimir Putin. E França continuará a trabalhar todas as vias e meios para reestabelecer a paz e “preservar a integridade territorial de todos os países”, avisa o documento.

O texto termina explicando que os socialistas terão, “nas próximas horas”, um Conselho Nacional para ratificar o acordo. Mas dificilmente a discussão de um texto histórico, que obriga os socialistas a cedências importantes, será pacífica — o Le Monde já anuncia que está “aberta a crise” no Partido Socialista.

No Twitter, o antigo líder socialista Jean-Cristophe Cambadélis já apelou aos colegas de partido que se revoltem contra o acordo, uma “rendição” do PS francês às mãos de Mélenchon: “A direção do PS diz partilhar objetivos programáticos com Mélechon. Se é a assinatura de uma rendição, assumam-na. Apelos aos socialistas a recusa deste acordo sob todas as formas possíveis”, atacou.

O antigo primeiro-ministro socialista Bernard Cazeneuve já tinha vindo criticar esta hipótese e avisado mesmo que sairá do partido se se concretizar, acusando o PS francês de ter “perdido a bússola” e de estar a “renegar as suas convicções”. Nas próximas horas se saberá se o partido que luta pela sua sobrevivência se agarra à proposta de Mélenchon para continuar à tona — e se o acordo será uma boia de salvação ou o fim definitivo, como consideram alguns analistas, dos socialistas em França.