Discutir francesinhas é como defender clubes de futebol. “Todos têm uma preferida e defendem-na até ao fim”, diz ao Observador Rafael Tonon, jornalista brasileiro, especializado em gastronomia (colabora para o suplemento Fugas, do jornal Público). A viver no Porto há quatro anos, era-lhe difícil compreender a popularidade desta comida. Era uma incógnita: “Toda a gente falava, ‘vamos comer uma francesinha e beber um fino’”. Dentada a dentada, conversa a conversa, foi com a sensibilidade que só o tempo facilita compreendendo a “riqueza”, o “valor” e o peso cultural desta nossa croque-monsieur, sanduíche francesa, que ganhou versão portuguesa quando em meados do século passado chegou ao país. O trabalho para a primeira edição da Farta, lançada em conjunto com o Another Collective — estúdio de design, sediado em Matosinhos, da qual fazem parte Ricardo Barbosa, Bruno Soares e Eduardo Rodrigues — consolidou ainda mais este entendimento.

De periodicidade semestral, a Farta vai dedicar cada uma das suas edições a um prato ou iguaria da cozinha popular portuguesa. “A francesinha foi uma decisão fácil. Eles são todos todos daqui e eu sou portuense de coração há quatro anos”, conta Rafael. “O mais difícil vão ser as seguintes”, confessa Ricardo Barbosa. Pelo que sabemos, o tema tem desta vez gerado debate.

A revista Farta pretende abordar cada detalhe dos pratos mais populares de Portugal. No desenvolvimento do conceito desta revista, que é antes plataforma (explicamos mais à frente), ficou desde logo estabelecido o seu intuito: “Queremos falar sobre as comidas que as pessoas comem. Não tem necessariamente de ser comida tradicional, com uma receita historicamente muito definida. Nós queremos falar sobre comida popular portuguesa”, conta Rafael. Familiarizado com o mundo dos restaurantes reputados e dos chefs estrelados, aqui o grupo afasta-se dele (como explica, inclusive, o manifesto publicado no site) e aproxima-se dos verdadeiros protagonistas gastronómicos da maioria das pessoas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“O tema é que define a revista”

Dos ingredientes às opiniões, encontra na primeira Farta uma análise exaustiva da francesinha. Há reportagens sobre os seus principais fazedores, ensaios fotográficos e reflexões (umas mais radicais, outras mais brandas) assinadas por diferentes autores. O objetivo passará sempre por abordar todos os ângulos — ou, no caso da francesinha, camadas — possíveis, desde que criativos e inexplorados. “Queremos esmiuçar os temas de forma detalhada”, conta Rafael.

O autor da conta de Instagram Cursed Francesinhas, onde se publicam as versões mais duvidosas deste prato (com morangos ou camarão, por exemplo), foi um dos convidados a colaborar: “O Cursed era um perfil que já tínhamos começado a seguir e achámos que seria giro convidar a pessoa por detrás da página para escrever, porque tem um visão muito curiosa sobre a francesinha”, diz Rafael. O resultado do seu texto foi inesperado: “Achei que fosse ser mais radical, mas concluiu que um prato para ser popular pode sair da escala do tradicional. O texto veio com essa surpresa.”

A pluralidade de visões e de backgrounds é, precisamente, o que constrói a identidade da Farta. “Acho que uma das grandes características da Farta é poder ter muitos colaboradores — desde jornalistas, a historiadores, sociólogos, poetas — que vão mudando consoante a edição”, conta, revelando que consideraram ter na edição de lançamento um rapper a escrever sobre a francesinha.  Sem rubricas fechadas, é sempre a iguaria a governar o processo criativo. “O projeto editorial é o tema, não é a revista em si. O tema é que define a revista.”

Todas as edições vão contar com colaborações de pessoas diferentes.

Só assim se poderia chegar a um dos mais criativos desafios incluídos nesta primeira edição: criar receitas com o molho da francesinha. “Porque é que não temos o hábito de usar o molho da francesinha?”, questionou-se um dia Rafael. Encontrou o produto à venda num supermercado e começou a testar em casa noutros pratos. Levou a ideia à Farta, mas passou a tarefa a Diana Barnabé e a Tiago Lessa, do Estúdio Cozinha, que criaram desde massa a um granizado partindo daquele que é um dos elementos mais característicos — e também mais fraturantes — da francesinha.

E de quantas formas se pode fotografar uma francesinha? De muitas, provam os fotógrafos Pedro Lopes, Álvaro Martino e Tiago Lessa. “Queremos  fotografar o mesmo prato, mas fazê-lo de formas diferentes”, explica Ricardo Barbosa. “Entregámos a pasta a três pessoas para extrair três linguagens diferentes”.

Pedro Lopes foi o responsável por “explorar os recantos e texturas que fazem a história da francesinha entre as tascas e balcões da cidade do Porto”, na secção Sem Palavras, dedicada exclusivamente à imagem. O seu trabalho resultou também numa obra disponível para compra no site da Farta.

É por isso que se diz que, mais do revista, a Farta é plataforma. Além do trabalho de Pedro Lopes, houve outras peças que saíram do papel: no site, está disponível o trabalho da ilustradora e designer gráfica Min — que em “Frnaecsihna” pensou a desconstrução do prato —, assim como “Vandoma”, conjunto de peças desenvolvidas pelo BePolar Design Studio, que criou um prato e uma molheira, com o objetivo de “elevar a francesinha ao patamar que só ela merece, como se de um altar se tratasse”.

3 fotos

Para a primeira edição da Farta colaboraram também Inês Matos Andrade, João Rodrigues, Teresa Castro Viana, Vasco Coelho Santos e Filipe Soares.

Uma revista que não se esgota no tempo

Antes de ser revista, a Farta esteve para ser zine ou até livro. Do brainstorming saiu vencedora a ideia da revista, ainda que com as suas particularidades. “Regra geral, as revistas surgem sempre associadas a um conteúdo fechado no tempo. Aquilo que queremos é torná-la intemporal, em termos de conteúdo e de imagem. Daqui a 10 anos, esta edição vai continuar a ser válida”, exemplifica Ricardo Barbosa.

Cada edição corresponderá a uma espécie de fascículo. Além de iguarias distintas, também as cores vão ser diferenciadoras. Na primeira edição destaca-se o amarelo — nas seguintes, serão outros os tons dominantes. “No fim, teremos uma coleção com abas de cores diferentes. Queremos que a Farta seja um conteúdo de coleção.”

A Farta quer tornar-se numa coleção de revistas intemporais, que resistem ao tempo.

É por isso que são utilizados fine papers, papel de grande qualidade, que torna a revista mais resistente ao tempo. Da identidade visual da Farta sobressai ainda o jogo de capas: numa aba, deitado e na vertical, surge escrito em letras grandes (e fartas) o nome da revista. O design é inovador, mas mantém vestígios da cultura popular.”Tentamos que o nosso logotipo — mais gordo, mais cheio, mais farto — representasse a nossa comida e ocupasse parte da capa.” Abrindo esta aba, o destaque passa a ser exclusivo da iguaria, que surge neste caso com uma das suas várias camadas a descoberto.

Deste “fascículo” de estreia, lançado em julho, foram produzidos mil exemplares (cerca de metade já foram vendidos). Está disponível online (18€) e em vários pontos de venda, no Porto (Princesinha e Stay Wise), Lisboa (Kitchenette e Under The Cover), Setúbal (Livraria Culsete) e Sagres (Picnic Sagres). Já atravessou fronteiras e chegou a lojas em Paris (França), em Barcelona (Espanha), em Glasgow (Reino Unido), em Viena (Áustria) e até numa loja em Sapporo, no Japão. “O rapaz que falou comigo nunca tinha ouvido falar da francesinha, mas estava familiarizado com a nossa gastronomia, porque o público dele tinha interesse. Foi a primeira loja que nos comprou”, conta Ricardo.

A próxima edição já começa a ser pensada, mas ainda não há consenso sobre a iguaria que a vai comandar. Quem sabe, o pão-de-ló ou o croquete.