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“Os Pecados da Nossa Mãe”: pode uma "americana exemplar" transformar-se em psicopata?

Este artigo tem mais de 1 ano

Esta é a história verdadeira de numa tragédia que poucos viram chegar — e os que a previram, morreram. A nova série documental de crime da Netflix dá voltas ao estômago e ainda não chegou ao fim.

"Os Pecados da Nossa Mãe" mostra, mais uma vez, como alguém é capaz dos atos mais horrendos em nome da religião, da obsessão pelo fim do mundo e do amor (embora doentio)
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"Os Pecados da Nossa Mãe" mostra, mais uma vez, como alguém é capaz dos atos mais horrendos em nome da religião, da obsessão pelo fim do mundo e do amor (embora doentio)

"Os Pecados da Nossa Mãe" mostra, mais uma vez, como alguém é capaz dos atos mais horrendos em nome da religião, da obsessão pelo fim do mundo e do amor (embora doentio)

Quando é que alguém passa de bom a mau? É possível identificar um ponto de viragem? Ou será que os sinais sempre existiram e nunca ninguém reparou neles? O que leva alguém a passar de mãe protetora a assassina dos próprios filhos?

As respostas não estão todas em “Os Pecados da Nossa Mãe” — o caso ainda nem sequer está resolvido em tribunal –, mas a nova série documental da Netflix mostra, mais uma vez, como alguém é capaz dos atos mais horrendos em nome da religião, da obsessão pelo fim do mundo e do amor (embora doentio). No fim dos três episódios não é possível ter pena ou compreender minimamente Lori Vallow, a protagonista desta história, mas talvez seja possível decidir o que pensamos dela: será apenas um peão manipulado sem ter real noção do que aconteceu ou será ela a manipuladora, incapaz de sentir empatia ou remorsos?

Nos EUA o caso é conhecido desde 2019, quando explodiu em todos os noticiários. Por cá, nem tanto. A narrativa de “Os Pecados da Nossa Mãe” começa então pelo início, para que possamos entender a infância, a vida e a transformação de Vallow. A cada episódio a história vai ficando mais sinistra e chocante, numa sucessão de acontecimentos mais surreais do que a sinopse de uma série de ficção.

Lori Vallow foi educada segundo os costumes da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias — ou como mórmon, se quisermos falar na língua dos comuns mortais. Loira, bonita, com carisma, depressa arranjou um marido, teve um filho e estava lançada para a vida de soccer mom (“mãe de futebol”, uma expressão usada nos EUA para descrever as mães que passam muito tempo a levar os filhos a atividades, a participar nelas, etc). O primeiro casamento não resultou, Lori passou para o segundo. O segundo casamento não resultou (havia agressões físicas e abusos sexuais dos menores), Lori passou para o terceiro.

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Presa no estado conservador do Texas, Lori precisava de mais palco e mais público: participou no concurso de Miss Texas, concorreu à “Roda da Sorte”. Com uma voz melodiosa a soar a falso e risinhos cliché, ao vermos a Lori dessa época parece que estamos perante uma cheerleader irritante, mas nada mais grave do que isso. No terceiro casamento, com Charles Vallow, encontrou estabilidade financeira e um ambiente calmo para os filhos, Colby e Tylee (filha que teve com o segundo marido), e embrenhou-se cada vez mais na religião. A família passou um par de anos no Havai, adotou uma criança, JJ, e tudo parecia normal e comum. Este retrato vai sendo traçado com a ajuda de inúmeros vídeos, fotos e depoimentos das pessoas mais próximas — Colby é das vozes mais presentes na série documental, além da mãe de Lori, Janis.

[o trailer de “Os Pecados da Nossa Mãe”:]

Regressados a Chandler, no Arizona, e com o filho mais velho casado, Lori começou a ficar obcecada com a ideia do fim do mundo. Segundo Colby, acumulava caixotes de arroz, leite em pó, tendas, tudo em quantidades gigantescas. No meio desta obsessão conheceu o homem que lhe viraria a vida do avesso (será que foi aqui o ponto de não retorno para Lori?), Chad Daybell. Pai de cinco filhos, autoproclamado profeta, pseudo-escritor e orador em palestras. Segundo o próprio, teve duas experiências de quase morte e viu a luz. Ou seja, era um ser especial, com dons espirituais e com um canal direto de comunicação com anjos, céu, Deus e tudo o que quiserem atirar para a lista. Mas o maior poder de Daybell era claramente o da persuasão. Ele dizia tudo isto e as pessoas acreditavam. Alerta seita, certo?

Ora, quando uma pessoa que já está paranoica se cruza com um tal ser superior, capaz de guiar os escolhidos no momento do apocalipse, dá-se a tempestade perfeita. De repente, tudo se precipitou e os cadáveres começaram a aparecer, como se fossem pássaros a cair, vítimas de raios certeiros. Morto número um: Charles Vallow; morta número dois: Tammy Daybell, mulher de Chad. O primeiro foi baleado pelo irmão de Lori, Alex, supostamente em legítima defesa. A investigação perdeu muito pouco tempo a tentar apurar o sucedido. A segunda morreu misteriosamente em casa. Uma mulher de 49 anos, saudável, cai para o lado e o que faz a polícia? Investiga? Nem por isso. Alerta complot para açambarcar seguros de vida? Certíssimo.

Se, neste ponto, a série documental já parece uma história rebuscada com psicopatas de vão de escada, pensem de novo porque, a partir daqui, é sempre a piorar.

O que fizeram Lori e Chad duas semanas depois da morte de Tammy? Casaram-se. Um ato normalíssimo de duas pessoas viúvas em pleno luto. Ou será que não havia assim tanto luto a fazer? Segundo Lori, Charles Vallow já estava morto há muito e o seu corpo era agora habitado por um ser maléfico, portanto eliminá-lo até foi um favorzinho concedido pelo irmão. Alerta chalupa/psicopata/vítima de lavagem cerebral?

Colby é das vozes mais presentes na série documental, além da mãe de Lori, Janis

Há duas coisas surreais neste momento. Primeiro, Lori achou que era mesmo urgente passar por uma cadeia de fast food e ir comprar chinelos após receber uma chamada do irmão a contar o sucedido. Segundo, as imagens registadas nas câmaras dos uniformes dos polícias quando Lori chega ao local do crime mostram-na descontraída e a fazer piadas. Possuído ou não, Charles acabara de morrer, e a atitude da mulher foi tudo menos normal.

Pouco depois também Alex aparecia morto e Lori desaparecia com os dois filhos menores (Kylee, de 17 anos, e JJ, de sete). Antes de morrer, preocupado com as crianças, Charles já tinha alertado a polícia e os familiares de Lori para os comportamentos e o discurso sem sentido dela. Porém, quando alguém vem dizer “a minha mulher está maluca, diz que fala com anjos e que me quer matar porque eu estou possuído”, quem é que parece estar a precisar de acompanhamento psiquiátrico? Lori sempre teve o tal carisma do lado dela e é impressionante ver como dá a volta aos investigadores, que riem e fazem piadas com ela em plena esquadra da polícia.

O último capítulo desta história teve o desfecho mais devastador possível, com os restos mortais de Kylee e JJ a serem descobertos nas traseiras da casa de Chad Daybell, queimados e atirados para o meio de um improvisado cemitério de animais, como se as suas vidas não valessem absolutamente nada. Até chegar aqui, muita coisa falhou. Depois de insistentes pedidos de familiares, a polícia foi à procura das crianças: Lori não deu detalhes, dizendo apenas que estavam com uma amiga noutro estado. Em vez de ser detida e devidamente interrogada, deram-lhe um prazo para apresentar os filhos. Esteve em liberdade, não forneceu qualquer informação.

Depois de detida, as apresentações ao juiz foram surreais. De sorriso na cara, Lori apenas estabelecia contacto visual com Chad, numa espécie de pacto macabro que arrepia só de imaginar. Também Chad acabou detido. Ambos aguardam julgamento por homicídio e conspiração de homicídio (no caso de Charles). É aqui que “Os Pecados da Nossa Mãe” falha. A história não está concluída e, a julgar pelo que aconteceu até aqui, as sessões em tribunal podem trazer elementos importantes e mais reviravoltas. Por isso, falta qualquer coisa. Era assim tão urgente disponibilizar a história na Netflix agora? Não teria sido preferível aguardar o veredito ou pelo menos ouvir o que os principais suspeitos têm a dizer? O timing parece atabalhoado e sem grande sentido.

Depois de detida, as apresentações ao juiz foram surreais. De sorriso na cara, Lori apenas estabelecia contacto visual com Chad, numa espécie de pacto macabro

Skye Borgman é a realizadora da série documental e conhece bem este género — também é ela que assina “A Rapariga da Fotografia” e “Abducted in Plain Sight” –, o que faz com que a cronologia esteja bem construída e seja fácil de acompanhar. Porém, há muitas pontas soltas: alguém investigou a morte de Alex (o irmão empenhadíssimo na religião que alvejou Charles e que, surpresa, também morreu pouco depois)? Porque é que há tão poucas pessoas entrevistadas? Teria sido interessante ouvir os filhos de Charles (avisados da morte do pai por SMS) ou os de Chad. Será que não quiseram? E os próprios Chad e Lori, sedentos de ribalta, terão sido contactados para falar? E a polícia que deixou passar uma data de sinais de alerta? Ninguém quis justificar-se?

Quando o julgamento arrancar, haverá certamente material para novos episódios. Ainda assim, não é certo se teremos estômago para ouvir uma mãe completamente alienada da realidade dizer que a obra do Senhor é superior e que os anjos lhe transmitiram mensagens — tudo com a mesma voz doce e pausada com que fazia um podcast, “Feel the Fire” sobre religião. Lori Vallow parece viver numa dimensão que não existe e talvez nunca tenha capacidade para explicar como e quando é que os próprios filhos, que tanto protegia, viraram zombies — uma definição para pessoas possuídas — e tiveram de ser sacrificados. Na cabeça distorcida de Chad Daybell havia um sistema, que ele inventou, com direito a pontuações. Havia seres de luz e seres das trevas. Os seus atos provaram ser tão desumanos que nem nesta última categoria deve existir lugar para ele.

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