Quando o canadiano Alan Nichols foi hospitalizado em 2019, por receios de que pudesse tentar o suicídio, falou com um irmão e pediu-lhe que o “safasse dali” rapidamente, conta a Associated Press – o entendimento do irmão é que Alan Nichols apenas queria que o tirassem do hospital, não estava a pedir ajuda para acabar com a própria vida, aos 61 anos. Mas, menos de um mês depois, foi isso que aconteceu, ao abrigo das leis da eutanásia no Canadá, que estão entre as mais permissivas do mundo. Na ficha que preencheu foi inscrito apenas um problema de saúde que justificava o pedido de morte assistida: “perda auditiva“.

O caso de Alan Nichols é uma de várias histórias que têm marcado o debate sobre a eutanásia no Canadá, onde mais de 10.000 pessoas morreram em 2021 por decisão própria – cerca de 3% de todas as mortes ocorridas no país naquele ano. Entre 2020 e 2021 houve um aumento de mais de 30% no número de mortes medicamente assistidas.

A partir de março do próximo ano as leis vão voltar a ser alteradas, mais uma vez no sentido de tornar o acesso à morte assistida mais fácil: problemas de saúde mental deverão passar a ser razão atendível para a eutanásia. Também se está a discutir a possibilidade de permitir eutanásia a pessoas que ainda não atingiram a maioridade – menores considerados “com maturidade” vão poder pedir a morte assistida, se essa intenção se materializar na lei.

Depois da morte, a família de Alan Nichols fez queixa à polícia e às autoridades de saúde. Neste momento, um dos critérios para que um pedido de eutanásia seja satisfeito no Canadá é que a pessoa esteja em sofrimento insuportável – não seria o caso de Nichols, que tinha um historial de depressões e outros problemas de saúde mas nenhum desses problemas lhe ameaçava a sobrevivência.

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Alan Nichols foi eutanasiado em 2019. FOTO: AP

Sobre a “perda auditiva” que foi colocada no pedido de eutanásia, a família de Nichols alegou que ele tinha um dispositivo que o ajudava a ouvir melhor – embora não quisesse usá-lo. E tinha, também, medicação psiquiátrica que lhe fora receitada mas que não tomava como devido. Terão sido funcionários do hospital a ajudá-lo a preencher a declaração a pedir a morte assistida, segundo a família – “foi, basicamente, abatido“, diz o irmão, Gary.

A veterana de guerra (e atleta paralímpica) a quem foi disponibilizada a morte

Um outro caso foi notícia recentemente, também no Canadá, e levou, até, a uma audição parlamentar. Christine Gauthier, uma ex-combatente e atleta paralímpica, estava há cinco anos a pedir um subsídio público para que lhe fosse instalado um elevador em casa. Depois de a mulher usar como argumento as grandes limitações físicas que lhe dificultavam o dia a dia, o organismo público a que se dirigiu propôs-lhe uma alternativa:

“Tenho uma carta a dizer que, se estava ‘assim tão desesperada, minha senhora, podemos disponibilizar-lhe a MAiD'” – a sigla para Medical Assistance in Dying, a morte medicamente assistida.

Christine Gauthier  foi ouvida no parlamento canadiano sobre o seu caso.

Christine Guathier, de 52 anos, chegou a escrever sobre o seu caso ao primeiro-ministro, Justin Trudeau. Um membro do governo, mais tarde, circunscreveu a responsabilidade por aquela carta a apenas uma mulher que trabalhava nos serviços públicos – mas aquela não foi a única carta escrita naqueles moldes: pelo menos cinco veteranos de guerra receberam “sugestões” semelhantes.

Canadá tem das leis mais permissivas do mundo na eutanásia

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O Canadá tem uma das leis mais permissivas do mundo na eutanásia, prevendo-se que em março haja mais uma alteração no sentido de tornar mais fácil o acesso à morte medicamente assistida. Uma das possibilidades é que menores (“com maturidade”) possam pedir a eutanásia – nos Países Baixos isso já existe: a morte assistida pode ser permitida a quem tem 12 anos, com autorização dos pais, e a quem tem 16 anos, sem necessitar de consentimento parental.

Também na Bélgica essa é uma possibilidade mas, nesse país, é necessária autorização parental para morte medicamente assistida de todos os menores do que 18 anos. Mas as crianças menores têm de ter uma doença terminal.

Um outro caso: homem de 71 anos, Rod McNeill, sofreu uma queda em casa e foi levado para um hospital no Ontario. Passado um mês, tinha sido sujeito a morte medicamente assistida e a filha garante que os médicos que fizeram o procedimento nem sequer contactaram o médico de família do seu pai para obter os seus registos médicos.

Também na região do Ontario, no Canadá, um homem com uma doença degenerativa do cérebro, gravou secretamente um diretor de ética do hospital a referir que custaria mais de 1.500 dólares por dia mantê-lo internado no hospital. “O meu papel aqui é falar consigo, para perceber se teria um interesse na morte medicamente assistida”, terá dito o responsável do hospital.

Estes são alguns dos casos que levam os críticos da legislação canadiana a alegar que, poucos anos após a primeira “liberalização”, já se tornou evidente que a morte medicamente assistida poderá estar a banalizar a morte e a desvalorizar o valor da proteção da vida humana – além de poder estar a levar a discriminação contra os mais velhos, aqueles que têm deficiências físicas ou as pessoas com condições económicas mais desfavorecidas

Para os cofres públicos e para o serviço nacional de saúde canadiano, porém, as poupanças são evidentes. A unidade que presta apoio orçamental ao parlamento do país elaborou em 2020 um relatório onde estimou em 86,9 milhões de dólares as poupanças anuais (líquidas) que a legislação da eutanásia poderia proporcionar.

Legalização da eutanásia aprovada. Votação final é na sexta-feira