Uma das anedotas de que me lembro de ouvir em criança é esta:

– Por que é que Carcavelos não cai?
– Porque está encostado à Parede.

Não me lembro se ria muito ou pouco, mas ficou-me. Demorei anos a conhecer a vila da Parede, nome que talvez reconheçam como uma das paragens de comboio da Linha do Estoril, mas quando lá passei a primeira vez lembrei-me logo da petite histoire, como me recordei há umas semanas quando lá fui, levada por um amigo que gosta do que escrevo, que decidiu mostrar-me umas das atrações da Parede, o restaurante marisqueira “Eduardo das Conquilhas”.

Desde há algum tempo que o “Eduardo” entrega em casa e serve take-away — e se orgulha do facto, publicitando-o amplamente — mas o meu amigo quis que eu vivesse o pitoresco de estar na origem e assim aconteceu. A expectativa era grande. “Pat”, dizia-me, “prepara-te para conhecer um dos segredos mais bem guardados na Linha de Cascais”. Obediente e sem nada de melhor para fazer dans ce jour, aceitei a proposta.

Para usufruir completamente do momento, estávamos para ir de comboio, mas uma greve obrigou-nos a mudar os planos e tivemos de pegar no automóvel. Vindos de Lisboa, apanhámos a belíssima estrada Marginal saindo da autoestrada na zona do Estádio. Olhando o mar durante o quarto de hora do percurso, lá entrámos na Parede, subimos contornando a Igreja, até que estacionámos no centro, perto dos Correios, onde por sorte saía um condutor. O “Eduardo” fica là-bas, disse-me o meu amigo, e lá fomos a pé umas dúzias de metros. Pude verificar que a Parede é uma pequena vila igualzinha a outras que tenho visitado em Portugal. É um conjunto de ruas estreitas, passeios com árvores de raízes subidas, cheia de óticas, bancos e lojas de aparelhos de audição, com cafés, pastelarias e um supermercado visível. Ou seja, é mais uma demonstração do envelhecimento da população portuguesa e, pelo menos naquele dia, a Parede mostrava-se triste e despovoada. Nunca tinha lá estado, não fiquei com vontade de regressar. Enfin, se precisar de óculos ou de um aparelho para melhorar a audição, talvez volte.

O “Eduardo” fica pertíssimo da linha de comboio e da estação da Parede, que é, como referi, uma das paragens da muito extraordinária Linha Ferroviária de Cascais, que liga Lisboa a Cascais desde o século XIX. Desde logo, e pelo que pude entender, porque a “Linha” (naquele sentido usado em frases que integram a expressão “os meninos da Linha”) se chama “Linha” por causa desta ligação ferroviária. Não fazia ideia e o meu amigo, que cresceu por ali, também não. A linha é especial também por ser uma linha ferroviária desligada da rede nacional, um tópico que não me interessa muito, porque não sou ferroviária, mas que achei singular e partilho.

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O “Eduardo” tem uma longue terrasse espalhada ao comprido pelo passeio público, provavelmente permitida por causa das regras Covid que revelaram aos portugueses as merveilles de uma refeição al fresco. Comemos no Portugal republicano, urbano e populaire, sem modernices como canteiros de madeira e baias pretensiosas pagas pela Bandida do Pomar. Confesso que me vou habituando a mesas a abanar em cima de passeios desnivelados e que esta informalidade me descontrai. É como se fosse um pic nic, com a diferença que temos o calcário, o alcatrão e o mármore a envolver-nos e não árvores, flores ou relva. Pelo menos não há tanta bicharada.

Não é simples encontrar mesa no “Eduardo”, muito menos cá fora. Apesar de sentar muita gente no interior, é no exterior que se queria estar no joli mois de mai. Bem relacionado, o meu amigo foi cumprimentar os empregados e quando voltou tínhamos lugar assegurado e voltei a confirmar que conseguir lugar sentado numa marisqueira portuguesa concorrida é das sensações mais satisfatórias que pode haver. Ser-se adulto, li uma vez, é compreender de uma vez por todas que a vida não vai ser sempre boa. Estes momentos são excelentes para acreditar que talvez não seja assim e renovar a esperança. No fundo, é voltar a ser criança.

Sentada na mesa, ali, na Parede do mar cheio de iodo, o tempo parou de repente. A comida do mar, os fruits de mer, existem desde antes dos dinossauros e eu sentia-me faminta como um brontossauro.

A carta revelou uma oferta generosa de ostras, camarão, ameijoas, mas também carne, os pica-paus, moelas, pregos, as bifanas, bitoques ou bacalhau, tudo o que português de jeito aprecia. Com viveiros próprios, no “Eduardo” a especialidade é mesmo o marisco e, como o nome indica, os bivalves. A intenção era atacar umas conquilhas vindas do Algarve, mas começámos pelos rissóis de berbigão (que estavam deliciosos) e fomos, claro, às conquilhas, ou cadelinhas como se chamam em alguns sítios de Portugal. De concha lisa e longa, as conquilhas no Eduardo são pequeninas e muito saborosas. Não imagino que reis e rainhas ou os milionários de Nova Iorque saibam o que sejam, mas são um petisco de se lhe tirar o chapéu. Há uma estranha história que diz que o Homo Sapiens chegou a espécie dominante porque comia crustáceos ricos em Ómega 3 e outros nutrientes preciosos deixados pelo mar, que fizeram o cérebro crescer e assim sermos mais espertos e inteligente que a concorrência. Não sei se é rigorosamente verdade, não sou bióloga ou arqueóloga, mas não estou a ver nenhum ChatGPT a melhorar esta receita do Eduardo, criada pela empregada Isabel há quase sessenta anos. Comendo aquelas cadelinhas servida em travessa de inox, senti-me capaz de resolver as palavras cruzadas da New Yorker.

De seguida chegou-nos um pica-pau e voltei à ideia de um dia escrever um livro sobre este petisco. Se há cem maneiras de cozinhar bacalhau, há pelo menos cem mil maneiras de preparar o pica-pau, todas boas e saborosas. Ali, a carne estava tenra e o tempero forte, a pedir pão e cerveja, aumentado centímetros no nosso perímetro abdominal e a faturação do “Eduardo”. Je recommande.

Almoçámos de frente para um Mazda cinza estacionado a vinte centímetros, em loiça personalizada (e muito bem), enquanto o meu amigo dizia com orgulho que os paredenses são conhecidos por “osgas” e me explicava que aquela era terra de sanatórios e dos que faziam praia por causa dos ossos. E de hóquei em patins. E das antigas instalações do Rádio Clube Português. Eu escutava enquanto voltava a divagar interiormente sobre a beleza que Portugal esconde na fealdade das suas cidades e localidades. Ali, a comer poeira e fumo dos carros, olhando para paredes sujas, cheias de grafitos e posters ressequidos e a pelar, lutando pela atenção dos empregados, tive uma excelente refeição porque o “Eduardo” é para todos, até para quem bebe BSE (como um casal des personnes âgées suficientemente sábios para não trocarem uma palavra durante a refeição inteira).

O verdadeiro Eduardo é uma simpatia e um senhor de mais de noventa anos. O meu amigo diz-me que ele ainda aparece por ali. O restaurante é cheio de história e de orgulho por essa história, um museu de decoração carregada como uma loja de souvenirs, adequada ao orgulho e ilustrativa de uma era que invejamos não ter vivido. Entre ditaduras, democracias e uniões europeias, confirma-se que para os portugueses o marisco e as conchas são des affaire très sérieuse.

Se lá quiserem ir um dia, fazem muito bem. O mais sensato será marcar mesa.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.