Nascida em 1937, em Guadalupe, Maryse Condé é considerada a voz literária mais proeminente da literatura das Caraíbas. A autora, que se doutorou em Literatura Comparada na Sorbonne, teve uma extensa carreira académica, tendo recebido o título de Professora Emérita da Universidade de Columbia, Nova Iorque. Em 2018, recebeu o New Academy Prize da Literatura; dois anos depois, o presidente Macron atribuiu-lhe a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito. Com selo da Quetzal, chega agora a Portugal este À espera da subida das águas (no original, En attendant la Montée des Euax, publicado em 2010 pela Éditions Jean-Claude Lattés), que foi nomeado para o National Book Award de Literatura Traduzida em 2021.

À espera da subida das águas é o décimo-quarto romance de Maryse Condé. Aqui, a autora apresenta um narrativa exuberante. De início, temos Babakar Traoré, médico que vive em Guadalupe. É chamado para assistir a um parto, mas Reinette, que está a dar à luz, morre logo após fazê-lo. É uma refugiada haitiana e não deixa para trás ninguém que possa tomar conta da bebé. Babakar decide assumir esse papel. Como a mãe queria que a filha conhecesse o Haiti, o novo pai cumpre-lhe o desejo. Com Anaïs, totalmente dependente dele, nasce um mundo novo: Babakar deixa de ser somente o homem amargurado, refém das lembranças da infância em África, e da angústia do desaparecimento de Azelia, um amor antigo.

Logo à cabeça, temos a ideia do Haiti como perigo vivo. Em conversa com Carmen, na altura amante de Babakar, podemos ler:

– O que dirias se eu fosse para o Haiti? – perguntou-lhe. – Acabava de vez com estas polémicas.
– Para o Haiti? Não há nada para comer nesse país. Além de fazerem vodu, os negros e os mulatos odeiam-se e matam-se uns aos outros.”
(p. 60)

Antes disso, podia ainda ler-se:

Gostei deste país assim que o vi. Havia tudo o que era preciso para comer e beber. Ao contrário do que sucedia no Haiti, onde os supermercados estavam sempre vazios, aqui estavam a abarrotar.”
(p. 51)

O Haiti, apesar das descrições da sua natureza viçosa, vai sendo apresentado como não tendo maquilhagem em cima. Sobre a pobreza que lá reina, não há segredos – quem vai, à partida, sabe bem ao quê. Ainda assim, nada disto pesa e Babakar vai na mesma. Antes disso, Movar, amigo de Reinette, também de origem haitiana, tenta reclamar a criança. Em vez de consegui-lo, trava amizade com Babakar e os dois decidiram ir para o Haiti em busca da família de origem da criança. Assim que chegam à ilha, hospedam-se no estabelecimento de Fouad, aspirante a poeta ali exilado, vindo da Palestina. Também este travará amizade com Babakar. Este trio acaba por criar os eixos de desenvolvimento da narrativa. Além destes, Condé investiu na criação do Haiti quase como personagem; mais do que paisagem, é um elemento constitutivo da narrativa, presente, vital. Aparece permanentemente como lugar de violência organizada e corrupção, mas também de beleza, centro de migrações e comunhão.

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Babakar põe-se em busca de quem possa contar a Anaïs a sua história, levando ao lado dois homens tão parecidos consigo: com passados diferentes, vivem vidas de exílio e solidão. Quando encontram Estrella, irmã de Reinette, o leitor entende de que forma a ideia do Haiti se imiscui na narrativa. O que parece casualidade é, afinal, consequência. Com Estrella, vem uma camada de violência e corrupção – ou seja, parte da imagem que vai sendo dada do país. Nem a morte de Reinette terá sido casual nem a do pai da sua filha. E, com isto, entra na narrativa uma dimensão política, com personagens corruptas, ex-duvalieristas (ou seja, apoiantes da Dinastia Duvalier, uma ditadura totalitária no país, que durou quase três décadas, abrangendo duas gerações da mesma família). E, sendo dado este contexto, à medida que a narrativa se desenvolve, ainda se vão vendo outras camadas de um país, e aqui incluem-se desastres naturais como ciclones e terramotos – que implicam o desamparo de um povo.


Título: “À espera da subida das águas”
Autora: Maryse Condé
Editora: Quetzal

Tradução: Sandra Silva
Páginas: 296

Com estes elementos, Condé consegue ir a todo o lado. Temos um contexto de violência e três homens marcados pela solidão criada pelo passado – e este sempre político. Com eles, vemos ainda os traços que criam as culturas dos países, estando a história a saltar em permanência entre África, o Haiti e as Índias Ocidentais, o que prova o romance como tendo grande ambição e como sendo capaz de não abdicar de nada. A narrativa vai fluindo com os destinos das personagens, e também com momentos em que, em discurso directo, estas, em conversa umas com as outras, fazem incursões no passado que servem para as constituir psicologicamente e para lhes marcar o lugar na narrativa. Isto implica capítulos inteiros deslocados para outros países, para os terrenos das acções, com vozes individuais e bem compostas. Por isso, o leitor que procure uma narrativa linear, um enredo a preto e branco, encontrará aqui outra coisa: os protagonistas vão formando a história, não porque a história seja um caminho de A a B, mas porque o percurso e a memória são per se o caminho, são per se o romance. Como a informação vai aparecendo em catadupa, seja essa informação a exuberância da natureza de uma ilha ou o martírio da violência ou a angústia da memória, o leitor sente-se sempre agarrado por fios de uma estrutura em que não há tempos mortos. Ainda assim, pode haver momentos em que se sente a instrumentalização do passado para compor a narrativa, na medida em que o presente se vai mostrando, aqui e ali, como ponto de referência – ou um pretexto – para que se façam essas incursões.

Percebe-se, assim, que a opção da autora é precisamente usar as personagens para mostrar o substrato, ainda que nos vá dando as memórias que têm também para as fazer gente. No cerne, está a ilha, e aquelas personagens parecem ter mais dimensão de colectivo do que de indivíduo, marcando a multiculturalismo, os movimentos de migração e os exílios. E, permanentemente, marcando a ideia de solidão. Daí, compreende-se a ausência de um enredo estruturado, optando a autora por uma narrativa quase ao sabor do vento, compondo as peças lentamente, formando o puzzle, seguindo um Babakar que parece sempre não saber bem por onde ir – talvez por não sabê-lo mesmo.

O romance, que partiu da ideia de um livro de histórias, vai mantendo essa sensação, saltando o leitor entre paisagens e personagens, mas estas estão tecidas de forma a que tenha sido formado um todo orgânico e a que À espera da subida das águas consiga dar a dimensão panorâmica de um país, da qual não se apaga a ideia do destino individual. Com isto, temos a ideia do trauma pessoal, nacional e colectivo em permanência, dado sob múltiplas lentes.

O trio de protagonistas marca as várias formas de migração em vários países, culminando estas no mesmo lugar – é esse lugar que serve como ponto de partida para o romance, sendo também o seu ponto de chegada. Tecer tudo isto não pode ter sido tarefa fácil, e por isso todos os méritos técnicos são também reconhecidos à autora, que ainda os aliou a uma capacidade estética que lhe permitiu discorrer sobre a vida sem gorduras. Ao olhar para os êxodos e as violências, a autora não meteu pó de arroz na prosa – mas também não andou às voltas a tentar sublinhar o evidente. Pelo contrário, o seu traço é incisivo – conta o que tem a contar e ainda usa o discurso directo com frequência, interrompendo a sensação de história a ser contada para criar a sensação de história a ser vista.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.