É a sequela do livro Less, que em 2017 (2019 em Portugal) já trouxe ao leitor um narrador desempoeirado, um enredo fresco e apetrechado por um finíssimo sentido de humor. Agora, Less Perdeu-se segue esses passos, mas pega em visões novas, apanhando a ação nove meses depois do ponto em que se ficara no livro anterior.

Recordando: Less é um romancista mediano, com uma carreira que nem envergonha nem encanta. Tudo nele, aliás, parece mediano. Por exemplo, a relação que tem com um homem bem mais novo é estável, mas não passa do satisfatório. Esse homem, convém dizer, é o narrador deste livro. Por sua vez, o antigo amante, Robert Brownburn, que morre à entrada deste volume, é um poeta laureado, e muito mais velho do que Less. A relação de 15 anos que tiveram deixa Less a viver na sombra.

No início da acção, Freddy, o narrador, está longe casa, passando um ano sabático no Maine a estudar. Prestes a voar para lá, Less descobre que Robert Brownburn acaba de morrer. É a ex-esposa de Robert (o casamento foi pré-Less) que lhe dá a notícia, dizendo-lhe ainda que a casa em que Less ficou a viver desde que terminou com Robert tem quinze anos de renda atrasada. Ou paga a quantia num mês ou será despejado.

Os súbitos problemas financeiros dão o mote à narrativa. Ao invés de voltar para junto de Freddy, Less lança-se numa viagem pelos Estados Unidos, aceitando trabalhos que lhe permitirão pagar a conta: entrevistar uma grande celebridade literária sobre quem irá escrever um perfil e ser júri de um prémio literário. Quase todo o livro representa essa viagem, ainda que pareça estranho que os honorários destas pequenas tarefas consigam pagar quinze anos de renda. Assim como assim, a narrativa lá avança, e os episódios vão parecendo leves, embora só assim seja porque Andrew Sean Greer opta por uma prosa sem gorduras, sem manias. Em vez disso, temos um texto com uma simplicidade que é difícil de encaixar e que invariavelmente mexe nas entranhas da vida.

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Título: “Less Perdeu-se”
Autor: Andrew Sean Greer
Tradução: Vasco Teles de Menezes

Editora: Quetzal
Páginas: 296

A personagem de Less compõe-se a cada página, porque cada episódio acaba por metê-lo em cena, dando ao leitor mais proximidade e empatia ao conferir-lhe mais intensidade psicológica e emocional. Parece, aliás, que há sempre uma questão de fundo, existencial, em cada pequeno episódio que Greer vai dando ao leitor. Ao mesmo tempo que cria uma espécie de epopeia por um país, vai adensando as personagens, particularmente Less, mostrando-o à luz do amor, das expectativas sociais e íntimas, do envelhecimento.

Tudo isto já existia em Less. Claro que, à medida que são acrescentadas cenas ao enredo, o leitor vai ganhando mais familiaridade com o protagonista, o que o obriga a querer escavar mais. A grande diferença deste volume em relação ao anterior é a forma com a personagem vai ainda servindo como eixo a partir do qual se explora a realidade da nação. A ideia do périplo permite-o, estando Less em vários estados, e em estados tão diferentes, e a opção de unir texto e contexto no mesmo movimento garante-o. O leitor, assim, acaba por ver na experiência de leitura uma espécie de viagem de acompanhamento duplo – uma cabeça e um país em simultâneo, embora este segundo, volta e meia, vá parecendo coisa pouca em relação ao que tinha para dar. Greer aflora, mas depois falha no mergulho. É que há uma leveza na forma como a prosa flui, que tem, ainda assim, sido capaz, tanto neste romance como no anterior, de dar a quem lê uma personagem em todo o seu esplendor – com anseios, pequenas vergonhas, desilusões. Contudo, esta leveza impõe barreiras quando, dentro do cenário do romance, se quer ainda criar profundidade política. Não é que isto saia desfasado, mas, uma vez aflorados os assuntos, o leitor fica com a ideia de que a menção passa a correr – e então o texto corre outra vez.

Com o seu tom de sátira às pretensões literárias, Greer aplica a fórmula que resultou no primeiro livro, e que, já agora, lhe valeu um Pulitzer: os holofotes sobre as inseguranças de um homem de meia-idade, desejoso de se vender, desejoso de ser bem-aceite no seu meio. Ora, o seu meio é não apenas o meio literário mas também o “meio gay”. Ao longo da narrativa, vamos percebendo que, no meio social em que Less se move, não há sequer problemas de homofobia. Em vez disso, existe a frequente acusação de que Less é um “mau gay”, em parte por, na sua literatura, parecer demasiado benevolente para com as sensibilidades heterossexuais (a ideia, por si só, já é satírica), em parte porque, esforçando-se ou não, tudo o que faz parece contribuir para que lhe seja colada a etiqueta: não só o ginásio em que se inscreve é uma espécie de antro sexual, como o são outros sítios/grupos a que se junta, como o partido político a que adere seguia uma teoria da conspiração sobre clínicas de saúde públicas. Tudo vai sendo meio confuso, mas, acima de tudo, é evidentemente exagerado e humorístico – as repetições contribuem para ambos –, numa estratégia que resulta em permanência.

Lido o livro, e sem que haja a sensação de ideia moída – pelo contrário, Less Perdeu-se acrescenta, ao invés de repetir –, o leitor, mais do que a leveza do sentido de humor, fica tombado por uma certa melancolia. Afinal, de graça em graça, de sátira em sátira, Greer mete no seu romance os grandes temas da humanidade – o passado que persiste como uma chuva lenta, o peso das coisas mal concluídas, o peso ainda maior das concluídas, a vida a seguir como uma flecha sem hipótese de redenção e sem que as mãos consigam combater o que é efémero.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia