As cidades são um compósito de tempos, onde camadas e camadas de passado se sobrepõem e as ruínas de um império morto podem servir para erigir novas casas para gente simples, podem servir de sustentáculo a novas ruas e estradas que um dia serão também elas engolidas por um cataclismo. É nessa condição de monumento e símbolo das eras pretéritas, que voltam à luz mais tarde ou mais cedo, que o Teatro Romano de Lisboa espera ser olhado e conhecido. Descoberto após o Terramoto de 1755, depois de séculos parcialmente subterrado, este Teatro, datado do século I d.C, é o mais antigo do país, ainda que a sua existência, na rua de S. Mamede, perto da Sé, passe despercebida à maioria dos transeuntes.
Numa tentativa de colocar este espaço ao serviço da cultura da cidade, Lídia Fernandes, a coordenadora do Museu de Lisboa — Teatro Romano, tem, desde 2016, devolvido a esta “sala” ao ar livre, a possibilidade de ser de novo um chão para dar a ver repertório clássico grego e latino. Este ano, a escolha recaiu em Plauto e na peça A Comédia dos Burros, escrita há mais de dois mil anos, que se estreia esta quarta-feira, dia 5, e fica em cena até 29 de julho.
Alvo de uma série de projetos de recuperação que nunca saíram do papel, o Teatro Romano, que pertence ao Museu de Lisboa, é um monumento envolto em precariedades várias, desde logo pela estrutura de telhas que recobrem, escondem e desfeiam as belas ruínas, com as suas colunas, os vestígios dos mosaicos que cobriam o chão. Este teatro, construído durante a época do imperador Augusto (o mesmo que encomendou a Eneida ao poeta Virgílio), seria um dos edifícios mais importantes da Lisboa romana e podia receber até 4 mil espectadores.
Apesar de ser um monumento que não recebe hordas de turistas, as sessões de teatro clássico costumam esgotar em poucos dias e este ano não deverá ser exceção. Com apenas 50 lugares, este espaço de pedras milenares tem mostrado que, não obstante a ditadura das novidades, que entontece os nossos dias, há público para ver e ouvir textos antigos, sobretudo desde que a Cornucópia fechou as portas deixando praticamente ao abandono a dramaturgia clássica. Portanto, ter uma peça de Plauto (251 a.C- 184 a.C)) encenada num teatro romano é pois um privilégio imperdível.
Joaquim Horta, ator e encenador que, pela segunda, vez assina o espetáculo no Teatro Romano de Lisboa, assumiu, em conversa com o Observador, “que a Cornucópia deixou uma lacuna grande no teatro português”, sobretudo por “pôr em cena os grandes textos clássicos”. Reconheceu que “gostaria de ter um espaço para fazer as suas próprias peças”, mas que “o teatro novo tem que conviver com o antigo” e que “é preciso que se façam os dois géneros, pois sem o antigo não sabemos onde e como posicionar o novo”.
“A Comédia dos Burros” ou o triunfo dos impostores
Não fora Portugal o país que é e talvez esta comédia, uma das primeiras de Tito Macio Plauto, nos parecesse datada. Não é o caso. O mundo corrompido, a cobiça, a manipulação, os jogos de poder entre os mais fortes e os mais fracos, a luta entre senhores e escravos, os interesses pessoais e as paixões efémeras que derrotam a honra, a ética, o amor, tudo isso faz esta peça soar extremamente contemporânea. Até pelas dificuldades intrínsecas a esta encenação, consequentes de um país que nunca apostou verdadeiramente na criação de cultura fora da esfera da economia. Assim, um grupo de seis atores e atrizes desdobram-se em vários papéis, pois “não há dinheiro para contratar mais gente”, explica Joaquim Horta, que, como tantos, faz das fraquezas forças e confessa que “uma comédia se adapta melhor a este desdobramento dos atores por diferentes personagens”.
N’A Comédia dos Burros, Plauto volta-se mais uma vez para a vida trivial, das gentes vulgares, sem que, com isto, se deixe cair em qualquer trivialidade. Com um olhar arguto sobre a verdadeira vida humana, o comediógrafo vem contar-nos a história de um rapaz que se apaixona por uma prostituta, o velho pai que arranja um esquema pouco limpo para pagar umas noites de amor ao filho, mas em troca quer também experimentar o leito da rapariga. Este será o ponto de partida para uma comédia de enganos, onde toda a ação se move pela intervenção de dois escravos ora submissos ora rebeldes, que se curvam ante os senhores que, secretamente, odeiam e desejam castigar. É nesta história que Plauto, um estilista virtuoso do latim usa, pela primeira vez a expressão “O homem é o lobo do homem” que, mais tarde, viria a ser, erradamente atribuída ao filósofo Thomas Hobbes.
Uma das principais características das obras de Plauto é o uso de trocadilhos, unindo a alta cultura e a cultura popular. As suas peças, que influenciaram Shakespeare, Bocaccio, Camões, Molière, dão-nos um retrato de um mundo tornado joguete do acaso e da loucura, lugar de manhosos, intrigantes e escravos espertos. Nesta versão de Joaquim Horta é impossível ficar alheio aos escravos cheios de agilidade e graça interpretados por Vicente Wallenstein e Vítor Silva e Costa. Do elenco fazem ainda parte Raul Oliveira, Mariana Cardoso, Catarina Requeijo e Hugo Narciso.
O cenário da peça são as próprias ruínas que vão sendo exploradas pelas personagens ao longo de uma hora. Apostando tanto na fisicalidade dos atores, quanto no trabalho sobre as várias camadas de ironia do texto, Joaquim Horta consegue uma peça viva, que galga os milénios e nos mostra o que há de inamovível na condição humana.
A Comédia de Burros estreia hoje, dia 5 de Julho e fica em cena de quarta a sábado, sempre às 21.30, no Teatro Romano de Lisboa, na rua de S. Mamede.