Quatro anos depois de se tornar uma estrela mundial do dia para a noite, Lil Nas X estreou-se em Portugal enquanto cabeça de cartaz do NOS Alive. O autor de “Old Town Road”, o tal single que funde rap com country e que o levou para o topo das tabelas, mostrou-se com um autêntico espetáculo em palco, encerrando com pompa e circunstância o segundo dia de festival no Passeio Marítimo de Algés.
A própria meteorologia parece ter ajudado, ao originar um nevoeiro que repentinamente envolveu todo o recinto. O fenómeno atmosférico criou um ambiente de mistério e expetativa para todos aqueles que aguardavam na frente do palco principal por Montero Lamar Hill, rapper e estrela pop de 24 anos que se tem vindo a afirmar no panorama global da música.
Em 2019, uma sessão de estúdio barata e um instrumental que lhe custou 30 dólares fizeram-no criar o single que permaneceria 19 semanas no topo do ranking norte-americano da Billboard Hot 100, batendo um recorde dos anos 50. Pouco depois, Lil Nas X faria novamente história, ao assumir-se como gay, tornando-se no primeiro artista a fazê-lo enquanto estava no número um das tabelas musicais.
A identidade queer tomou conta do projeto artístico de Lil Nas X desde então. O rapper navega pelas águas da pop mas de forma provocadora e subversiva, esbatendo barreiras e procurando abrir mentalidades, seja através dos versos, dos movimentos de dança ou da forma como se veste. Em Algés, apresentou-se com uma peruca loira e um corpete dourado, com umas volumosas calças brancas que rapidamente se romperam (para surpresa do próprio e da plateia).
Consigo trazia um elenco de talentosos bailarinos que iam dando corpo à teatralidade da performance. Com uma cenografia ambiciosa e efeitos visuais que remetiam para um universo cósmico, Lil Nas X veio para mostrar que não é deste planeta. Ou que, ainda que tenha gosto pelo extravagante, também tem todo o direito a existir e a ser validado por isso mesmo.
O concerto abriu logo com “Montero (Call Me By Your Name)”, outro dos seus grandes sucessos, que deu nome ao álbum de estreia, editado há um par de anos. Outros dos momentos altos foram, claro, a interpretação de “Old Town Road” (com um enorme cavalo branco a irromper pelo palco com Lil Nas X em pose de cowboy); “That’s What I Want” e “Industry Baby”, a faixa que partilha com Jack Harlow.
Com refrões melódicos e uma sonoridade suficientemente diversa, assente num espetáculo bem oleado onde não há tempo para pausas, o músico provou que não é como tantos outros rappers da sua idade que se apresentam em performances genéricas, em modo clubbing, e que tem realmente algo a dizer e a mostrar. Não é só fogo de vista, Montero é artista de substância. Aos 24 anos, o calibre pop está mais do que afinado e Lil Nas X já é um ídolo consagrado desta geração.
O charme inconfundível dos Arctic Monkeys
Há uma razão para os Arctic Monkeys arrastarem multidões por onde passam: estes rapazes sabem o que fazem. O concerto desta sexta-feira no Passeio Marítimo de Algés foi prova disso mesmo. As espectativas eram moderadas, até porque a banda tinha passado por Portugal há bem pouco tempo — em setembro, no Kalorama —, mas os Arctic Monkeys parecem ter aprendido com as atuações dos últimos meses. O concerto, mais longo e mais consistente do que o do ano passado, foi irrepreensível, quase perfeito. Foi um dos melhores que se viu até agora no NOS Alive. Para isso contribuiu não só a experiência entretanto amealhada pela banda, mas também a setlist equilibrada, com temas aparentemente escolhidos a dedo para a atuação em Algés, e o maior à vontade do vocalista, que aprendeu a desprender-se da guitarra e a movimentar-se mais em palco.
Ao contrário do que aconteceu em setembro, quando escolheram abrir o concerto com uma das suas canções mais populares, “Do I Wanna Know?”, a atuação desta sexta-feira dos Arctic Monkeys começou com a bem mais lenta e dramática “Sculptures Of Anything Goes”, do ainda fresco The Car (2022), o mais recente álbum da banda. (Foi, aliás, preciso esperar cerca de uma hora para ouvir “Do I Wanna Know?”, o que levou a que uma fã exclamasse: “Finalmente!”). Isso não significa que ficaram a faltar as canções mais conhecidas, como “Fluorescent Adolescent”. Apenas apareceram noutra altura do alinhamento, composto sobretudo por temas rápidos e pesados, retirados dos vários álbuns da banda fundada em 2002, mas que foram sendo intercalados por canções mais leves e orelhudas.
Alex Turner entrou em palco sem a guitarra. Mais expressivo do que costumava ser habitual, movimentou os braços na direção do público ao som da música, como um ator numa peça de teatro. De blazer e camisa branca com as golas levantadas, ia passando as mãos pelo cabelo, como um galã dos anos 70. “Greetings, Lisbon”, disse, com o seu sotaque very british. Homem de poucas palavras, dirigiu-se apenas algumas vezes à multidão, quase sempre com frases curtas e quase enigmáticas, como “fantástico, obrigada!” ou “que noite!”.
Depois de “Sculptures Of Anything Goes”, a banda fez uma viagem ao passado com “Brianstorm”, do Favourite Worst Nightmare (2007), e “Snap Out of It”, do AM (2014). Seguiu-se a fortíssima “The View From Afternoon” e um tema do novo álbum, “It Ain’t Quiet Where I think I Am”, uma das poucas canções de The Car que integraram o alinhamento do concerto desta sexta-feira. Tal como no Kalorama, a banda decidiu não apostar muito nos temas novos, apesar da publicidade feita por Turner: “Temos um novo álbum chamado The Car”. As recentes qualidades dramáticas do vocalista foram mais evidentes em canções como “The View From Afternoon”, “Connerstone” e “Why’d You Only Call Me When You’re High?”, mas alguns dos melhores momentos aconteceram durante “Arabella”, a história de “uma rapariga”, e a dramática e muito rápida “Pretty Visitors”, um grande tema rock.
Foi um espetáculo longo, mas intenso. Os Arctic Monkeys não perderam o fôlego durante quase duas horas e ainda voltaram para um encore de três músicas. Infelizmente, uma parte significativa do público tinha entretanto abandonado o espaço junto ao palco principal, que recebeu a seguir Lil Nas X, numa mudança drástica de sonoridade que foi marca deste segundo dia do NOS Alive.
Lizzo: a atuação generosa de uma performer nata
Num segundo dia com um cartaz tão diverso, Lizzo era uma das artistas mais esperadas pela geração Z. A rapper e compositora norte-americana tornou-se, ao longo dos últimos anos, num dos nomes mais influentes para o público adolescente e jovem adulto. E isso notou-se bem na frente de palco, com inúmeros cartazes dirigidos à artista, com os fãs a cantarem as letras que conheciam de cor.
Na sua trajetória mais recente, Lizzo tem sido mais cantora e menos rapper, aproximando-se de uma sonoridade disco ou synthpop e deixando de lado os instrumentais colados ao trap. Transformou-se cada vez mais num ícone pop e foi precisamente isso que representou ao vivo no NOS Alive, naquela que foi a sua estreia absoluta em Portugal.
O álbum que lançou no ano passado, Special, é um hino ao amor próprio. Com um tom profundamente otimista, espalha mensagens de amor e gratidão, e também de aceitação — seja do corpo, do género ou da etnia. Temas que dizem muito, e bem, à tal geração Z. Em termos sonoros, é um disco pop recheado de elementos dançáveis, funk ou R&B.
Lizzo é uma verdadeira performer e trouxe ao Passeio Marítimo de Algés um dos espetáculos mais completos que o recinto viu nesta edição — com uma cenografia impressionante, efeitos visuais nos ecrãs gigantes e um jogo de luzes bem aproveitado. Tocou acompanhada por um grupo de bailarinos e pela sua banda feminina, percorrendo, como mandam as regras, um alinhamento composto por momentos eufóricos e outros mais contemplativos.
Apesar da performance meticulosamente engendrada, com muitas referências digitais e coreografias dignas de TikTok, houve espaço para momentos espontâneos: Lizzo retribuiu o amor dos fãs ao assinar cartazes, tirar fotos para as redes sociais e até ao cantar os parabéns a um aniversariante. “No caso de ninguém te ter dito, Lisboa, you are the fucking special bitch”. Pelo meio ainda homenageou os seus ídolos Coldplay com uma versão de “Yellow” e impressionou os menos conhecedores ao tocar flauta antes de fechar a performance com o seu grande hit, “About Damn Time”. Ao cair do pano, já não havia diferenças geracionais: Lisboa virou “Lizzbon” durante uma hora e “ponto final, bitch”.
Para os City and Colour, o rock não morreu
O concerto dos City and Colour, no palco secundário do NOS Alive, não começou da melhor maneira. A banda entrou em palco e… Não se ouvia nada. Apercebendo-se do problema, o vocalista e guitarrista Dallas Green sentou-se em cima de um amplificador, pegou numa cerveja e encolheu os ombros. Afinal, o que é que podia fazer? Experimentou-se ali, testou-se acolá e nada funcionava. A banda acabou por sair do palco, voltando a entrar cerca de dez minutos depois. “Estava a tentar dizer que vimos do Canadá”, disse Green, finalmente com o microfone a funcionar.
“O que aprendi por fazer isto desde sempre é que os problemas acontecem”, afirmou, mais à frente no concerto, o segundo no Palco Heineken nesta sexta-feira, que abriu com The Amazons e fechou com Morad, perto das três da manhã. “Se algum dia procuraram por alguma coisa, esta canção é para vocês.” O tema era “Two Coins”, do álbum The Hurry and the Harm (2013), o quarto do grupo de folk rock formado por volta de 2005.
“Esta é a primeira vez que toco em Portugal. Acreditem, a culpa não é minha. Nunca ninguém me perguntou se queria tocar aqui. Sei que vocês queriam”, disse Green, apelando à audiência para que pedisse para “voltar”. “Esta música fala sobre ser amável. Não estou a falar dos amigos ou da família; estou a falar dos estranhos ao vosso lado. As pessoas que estão a tentar ultrapassar esta coisa difícil chamada ‘vida’. Se conhecerem esta música, cantem-na e sejam amáveis para a pessoa ao vosso lado. Se são estúpidos, vão buscar uma cerveja”, declarou o músico, antes de tocar os primeiros acordes de “We Found Each Other in the Dark”.
Com o recinto junto ao Palco Heineken mais composto do que quando a banda surgiu em palco, Green, que se foi tornando mais conversador à medida que o concerto avançava, comentou que as pessoas lhe continuam a dizer que “o rock morreu”. “Está bem, mas temos algo a dizer sobre isso…”, disse, pouco antes de cantar os primeiros versos de “Weightless”, a que se seguiu “Underground”, uma “canção sobre estar aqui e agora”. “Desliguem os telemóveis e desfrutem deste momento. É tudo o que têm.”
Lembrando que o concerto no Passeio Marítimo de Algés era o último da digressão europeia da banda, que só voltará à estrada no final de agosto, nos Estados Unidos da América, e que a atuação estava a entrar na reta final, Green aproveitou a oportunidade para agradecer à “banda maravilhosa” e à sua “bonita mulher que grita enquanto dorme” e que inspirou a canção “Fragile Dreams”, de Little Hell (2011), uma das últimas do concerto.
Um fenómeno (incompreensível) chamado Girl in Red
Entretanto, com a hora do início do concerto dos Idles a aproximar-se, o espaço junto ao Palco Heineken começou a esvaziar-se, só voltando a encher pelas 20h, quando Marie Ulven Ringheim, mais conhecida como Girl in Red, surgiu saltitante. Ringheim, que se tornou conhecida logo com o seu primeiro single, “I Wanna Be Your Gilfriend” (2018), reuniu entretanto uma legião de fãs, que se fizeram ouvir no NOS Alive. Para isso terá contribuído o facto de ter feito a primeira parte dos concertos da digressão de 2022 de Billie Eilish e de estar neste momento a acompanhar Taylor Swift. Swift foi, aliás, referida mais do que uma vez ao longo do espectáculo desta sexta-feira no Passeio Marítimo de Algés, com Ringheim a lamentar-se que, como os concertos da tour são em locais fechados e têm lugares sentados, “não pode haver moshpit”.
Ringheim canta e toca pop rock, com letras que falam sobre os altos e baixos dos relacionamentos amorosos, mas a atitude da música norueguesa é a de uma estrela de rock ‘n’ roll. Girl in Red entrou em palco a fazer headbanging. Saltou e correu enquanto entoava, acompanhada pelo público, os versos de “You Stupid B****”, tema com que tem aberto os concertos da digressão de Swift e com que também abriu a atuação desta sexta-feira. Fez crowdsurfing e tocou guitarra no chão. Com uma energia inesgotável, parecia impossível que tivesse comido “ameijoas estragadas” na sua primeira visita a Portugal.
Além de “You Stupid B****”, o alinhamento incluiu temas como “Body and Mind”, “Girls”, “We Fell in Love in October”, “October Pass Me By”, “I’ll Call You Mine”, uma “música de verão”, “Serotin”, “Dead Girl in the Pool” e “I Wanna Be Your Girlfriend”, o primeiro êxito.
Apesar do carisma, Ringheim tem o mesmo problema que muitos outros ‘fenómenos’ — musicalmente, não tem muito que se lhe diga. Ao fim de dois ou três temas, facilmente se percebe que não tem muito mais a oferecer além do mesmo esquema musical pop rock baseado na guitarra elétrica. Não sendo uma vocalista excecional, as fórmulas vocais também se repetem. As músicas começam a parecer todas iguais e o espectador aborrece-se. Vale pela atitude, mas essa não pode garantir que Girl in Red seja um fenómeno para durar.
O rock ‘n’ roll trabalhador dos Idles
Depois do estrondoso concerto no palco secundário na edição de 2019, os Idles foram promovidos ao maior dos palcos do Passeio Marítimo de Algés. Embora a sua música combativa peça, por natureza, salas apertadas, os britânicos mereciam esta distinção — e, sem nunca perderem o registo, souberam estar à altura do acontecimento. O palco pode não ser envolvente nem tão propício ao registo de mosh (sobretudo num dia com cabeças de cartaz tão diversos), mas nem assim faltou crowdsurf, copos a voar pelo ar e uma boa dose de agitação. Faz-se a festa com o que se tem.
Em seis anos, desde que lançaram o álbum de estreia Brutalism (2017), os Idles afirmaram-se como uma das bandas essenciais para revitalizar a cena rock britânica. Embora prefiram não se assumir como tal, carregam uma incontornável carga punk, com as suas canções eletrizantes e políticas, cantadas e tocadas com urgência, refletindo as angústias da classe trabalhadora que representam.
Ao vivo, essa intensidade traduz-se num espírito de energia total. O magnético Joe Talbot é um motim em palco, nunca parando quieto, qual cantor de hardcore, pintando de suor a camisa que trazia vestida. “Que se lixe o ritmo, vamos embora, seu cretino”, atirou para um dos colegas instrumentistas numa transição entre músicas. O som não estava particularmente inspirado, com as guitarras a soarem demasiado baixo, e Talbot parecia algo rouco demais. Mas a atitude, o principal argumento no rock ‘n’ roll consciente dos Idles, nunca arredou pé. “Fuck the king, fuck the king”, cantou repetidamente, celebrando também os imigrantes e a força da união com um punho cerrado ao alto.
Da bateria ao baixo, passando pelos dois guitarristas, todos estavam profundamente comprometidos com o momento, divertindo-se e dispostos a levarem-se até aos limites físicos, enquanto replicavam o intenso universo sonoro dos discos. “Nós Idles temos sido merda, vocês têm sido mágicos! Muito obrigado”, agradeceu o sempre humilde Joe Talbot, despedindo-se do público do NOS Alive.