No dia em que assisti a Em Busca da Verdade, de Ingmar Bergman, pensei com espanto: “Esta água é mais real do que a água que eu tinha visto até hoje”, “estas paredes têm mais mistério do que muitos mistérios que me tentaram vender.” Imagino que experiências deste tipo sejam comuns entre os amantes de cinema. Num dado momento, talvez no fim da juventude, o encontro com algum filme que atinge os
próprios fundamentos do que é ver.

Não se trata apenas de gostar, de sair da sala satisfeito. Há um abalo na forma de reconhecer as coisas. Talvez a melhor maneira de começar a falar de La Strada — incluído no ciclo da Cinemateca sobre as predileções do Papa Francisco — seja dizer que é um filme com esse poder de regeneração do olhar. Mas com uma especificidade muito própria. Enquanto outras obras nos despertam para aspetos nunca antes considerados, ou fazem redescobrir o que estava perdido entre o nevoeiro quotidiano, com La Strada é como se víssemos o mundo pela primeira vez.

O filme começa com um artista itinerante a pagar à mãe de uma família pobre para que uma das filhas se torne sua companheira de estrada. Acompanha depois o percurso de descoberta do mundo por parte desta jovem um pouco retardada. O pequeno milagre de Fellini é replicar, na maneira como nos mostra a história, a ingenuidade da sua protagonista — filmando a vida de baixo para cima. Os olhos muito abertos de Gelsomina, além de um dos objetos preferidos da câmara, que se compraz a registá-los
como um encantador divertimento de circo, são o próprio espírito de La Strada, a essência do seu ponto de vista.

Conta-se que, depois de ver uma fotografia de Giulietta Masina com dez anos, Fellini lhe terá pedido que representasse a personagem de Gelsomina a partir das suas memórias de criança. Seja verdade ou não, enquanto espectadores somos postos na posição de um olhar primevo, desarmado diante das coisas. À maneira das crianças. Ou melhor: como se fôssemos devolvidos a um tempo mítico, em que não tínhamos a mania de já saber tudo. Apesar de a acção se passar entre brigas de taberna e bastidores de circo, apesar de ter no centro a brutalidade dos homens e as coisas patéticas que fazemos, o ponto de vista da descoberta permeia o aparecimento de tudo como uma luz mais justa do que a habitual. O esplendor do filme tem a ver com isso.

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O ambiente em que a ação decorre, limpo de referências temporais, rural e despojado, atravessado por aparições emblemáticas como a do circo ou a do convento, contribui para o efeito. O motociclo belo e tosco em que os artistas percorrem a estrada — uma metáfora escondida entre a matéria narrativa — também. E podíamos continuar a enumeração. Mas a soma não chega para explicar o que os olhos veem e lá acabamos a falar, com a vagueza do costume, na unidade de sentido que brilha à nossa frente ou no que acontece quando uma alma agraciada com um dom especial vai ao fundo de si mesma. Acabamos a ter de falar na visão de Fellini.

Esta invenção de um universo próprio, que valeu ao realizador acusações de alguns partidários do neorrealismo, por não corresponder ao programa idealizado pela escola, nunca descamba na auto-glorificação. Há artistas que não são banais, têm rasgo e originalidade, mas cujas criações trazem etiquetas a dizer: “Vejam como eu não sou banal!” Em La Strada, pelo contrário, Fellini está de joelhos diante da sua visão artística. O foco está todo nas personagens: sobretudo Gelsomina, rapariga inexperiente que viaja de olhos arregalados, e Zampanò, homem batido que foge de qualquer pergunta pessoal, duas personagens maiores do que as suas circunstâncias, duas personagens cujo destino, apesar de muito particular, espelha o facto universal de sermos como que uma versão mal ensaiada de nós mesmos.

A capacidade de não se deixar devorar pelos próprios méritos nota-se ainda em vários outros pontos de La Strada. Tal como a personagem do “Louco” se equilibra no fio estendido entre os edifícios da cidade, bem lá no alto, Fellini equilibra-se no fio de opções estilísticas de onde seria muito fácil cair. É afirmativo sem ser moralista. É caricatural sem ser cínico. É simbólico sem deixar que nada se transforme na encarnação forçada de ideias gerais, estabelecidas de antemão.

Se prestarmos atenção ao modo como estas proezas se concretizam, confirmamos que os pormenores são decisivos. Uma das ideias centrais da história prende-se com o reconhecimento por parte de Gelsomina, a dada altura, de que a sua vida tem valor e de que esse valor está associado a uma missão concreta. Há um contraste notório entre a primeira parte do filme, em que Gelsomina diz adeus à família num estado de atarantamento completo e dá a impressão de ser um saco de boxe no qual a vida descarrega violência, e a segunda parte, em que assume como sua missão cuidar do brutamontes que a acompanha estrada fora. Essa mudança na compreensão de si mesma começa no momento em que o “Louco” lhe pergunta se ela gosta de Zampanò (Gelsomina fica baralhada por alguém, pela primeira vez, se preocupar com aquilo que lhe interessa) e torna-se clara depois de ele lhe ensinar que “até a mais pequena pedra deve ter um propósito”. Ora, no início deste discurso — no instante em que o espectador pressente que algo de fundamental vai ser revelado — o “Louco” chama-lhe “cara de alcachofra”. É uma coisa de nada, não mais que um comic-relief bem apanhado, mas permite ao mesmo tempo manter o filme na sóbria linha poética que o caracteriza e avançar sem demasiada pompa para uma nova etapa da história, em que as vidas das personagens  ganham uma dimensão moral de que não suspeitávamos antes.

Conta-se que, depois de ver uma fotografia de Giulietta Masina com dez anos, Fellini lhe terá pedido que representasse a personagem de Gelsomina a partir das suas memórias de criança.

Certos críticos interpretam o final de La Strada como o fechar melancólico do círculo: na costa onde a aventura começou, Zampanò chora a mulher morta e a miséria dos seus próprios actos. A história corresponderia a um círculo negro, triste como a morte, vão como as lágrimas que correm depois de tudo já estar perdido. Parece-me, porém, uma leitura redutora. E, embora não saiba se a admiração do Papa Francisco pelo filme tem alguma coisa a ver com esta conclusão, julgo que é ela que justifica a ideia de estarmos perante o filme mais cristão de Fellini.

Numa cena anterior, quando Gelsomina se despede das freiras que os acolheram no convento, vemos um grande crucifixo ao fundo. Se Gelsomina tinha já descoberto o propósito da sua vida, esse propósito ganha a partir daí o sentido radical daquilo que na linguagem cristã se chama a sabedoria da cruz — essa que, como disse São Paulo, é escândalo para os judeus, loucura para os gentios e uma não-entidade para os críticos modernos. A aparição do crucifixo parece significar que a decisão da protagonista não tem um valor condicional, não pertence à lógica do “vamos ver no que dá”. É um sinal que radicaliza a descoberta que Gelsomina tinha feito sobre si mesma, expressando a possibilidade de ir até ao fim no amor por alguém incapaz de retribuir esse mesmo amor. Ela acaba por enlouquecer, por ter entregado a vida a quem matou o seu melhor amigo. Mas, mais do que um final infeliz, isso é o corolário da decisão simbolizada pelo crucifixo: a revelação do “escândalo” que esse símbolo encerra. Zampanò não parece acabar melhor, caído na praia a chorar como um menino perdido. Mas também aí as aparências escondem o mais importante: o primeiro momento em que se reconhece fraco é o primeiro momento em que toma consciência de si. O filme termina com Zampanò a libertar-se da ilusão das ilusões, aquela que a tradição cristã considera a mais perigosa de todas, a ilusão da auto-suficiência.

Enquanto o homem chora de cabeça enfiada na areia, Fellini mostra-nos as ondas que continuam a chegar à praia, numa cadência serena e regular. Mistérios de uma impenetrável magia. O cinema em estado de graça.