A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica apresentou recentemente os dados da sua investigação, permitindo às autoridades eclesiásticas reconhecer e reparar erros do passado e implementar medidas futuras preventivas.

Os estudos científicos têm de obedecer a regras éticas e de confidencialidade, principalmente numa temática tão melindrosa e sensível, de forma a harmonizar a profundidade da análise com o respeito pelas pessoas. Na minha opinião, o trabalho da Comissão Independente não cumpriu com alguns destes requisitos.

Sabemos que não existem estudos sem limitações metodológicas. Habitualmente os investigadores, respeitando a praxis científica, assumem essas limitações de forma detalhada, num capítulo específico. Porém, no presente estudo não se encontra essa caracterização.

Por exemplo, de acordo com o relatório (pág. 26), foram validados 512 testemunhos do inquérito online:

Para a validação cuidada dos testemunhos, procurou-se a sua consistência narrativa e a triagem de falsas informações, excluindo casos que correspondessem a categorias de idade fora do estipulado, discursos de distorção da memória traumática ou mesmo a confabulações sobre a realidade.

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Mas como é que se avalia com algum rigor, somente através de um inquérito preenchido online (sem recorrer à entrevista pessoal), “distorções por memórias traumáticas”, ou “confabulações sobre a realidade”?

O relatório refere que somente em 34 casos foi realizada uma entrevista pessoal. Este é um valor muito baixo (6,6%), face ao número total de testemunhos (512), dado que a entrevista presencial seria a forma mais fiável de proceder à validação dos testemunhos.

Os membros da Comissão Independente assumiram no relatório que surgiram vários dilemas éticos, tratados e debatidos em equipa (pág. 28 e pág. 149). Contudo, quem está familiarizado com estudos científicos sabe que não é este o procedimento habitual. Antes de ser executado, o estudo que se debate com dilemas éticos não os resolve pelos seus autores, mas submete-os previamente a uma comissão de ética independente. O estudo não indica os motivos para se ter prescindido desta importante cautela.

Os resultados deste estudo levantam vários problemas de privacidade e confidencialidade. Estas questões não foram cabalmente respondidas, nem acauteladas, no referido relatório, Senão, vejamos:

  1. Atendendo à tipologia deste estudo, não estaria a Comissão Independente obrigada a solicitar um parecer prévio ou uma autorização à Comissão Nacional de Proteção de Dados?
  2. Os dados fornecidos pelos participantes foram obtidos através de um inquérito disponível na internet. A plataforma eletrónica utilizada reunia as condições de segurança suficientes? Poderia o mesmo participante submeter vários questionários? Relativamente à confidencialidade, a página usada no inquérito armazenava o endereço IP dos participantes?
  3. Quais foram as pessoas que tiveram acesso aos dados completos? O seu armazenamento cumpriu as regras mínimas de segurança informática?
  4. Uma das formas de um estudo garantir a confidencialidade dos participantes é tratar os dados coletivamente. Neste caso, os dados também foram apresentados individualmente e amplamente divulgados pela comunicação social. No guião do inquérito fornecido aos participantes não está contemplada esta autorização (pág. 473). Em que fundamento legal se baseou a Comissão Independente para poder divulgar publicamente estes relatos individuais?
  5. Os testemunhos individuais divulgados são muito pormenorizados, levando a que as vítimas, e os agressores, possam vir a ser identificados. Nestes casos, onde está a garantia prometida de anonimato e de proteção de informação tão sensível, expondo-se publicamente estes elementos?

Existe outra questão ética que merece ser discutida, pois os fins não justificam os meios. A Comissão Independente referiu repetidamente (e bem) a sua preocupação com as vítimas dos abusos sexuais. No entanto, na apresentação pública do relatório expôs, de forma detalhada,  excertos de alguns testemunhos. Seria importante refletir: como ficaram psicologicamente as vítimas ao assistirem à divulgação pública, através da comunicação social, da sua intimidade e do seu sofrimento individual?

A “nudez psicológica” das vítimas, expostas numa cobertura mediática reconhecidamente extensa e intensa, levanta questões sobre os limites éticos da divulgação pública dos seus casos, designadamente das suas vivências traumáticas pessoais. Não se vê como é que a propagação pública destes testemunhos individuais possa dar maior credibilidade ao relatório, nem ajudar a reparar a dor; pelo contrário, nalguns casos poderá reativá-la. Estamos a falar de pessoas que provavelmente hesitaram muito até terem a coragem de contar a sua história dolorosa que nem aos próximos conseguiram revelar. Não tenho notícia de algum pronunciamento sobre esta preocupante realidade por parte dos responsáveis do estudo.

Concluindo, do meu ponto de vista, este trabalho da Comissão Independente não deveria ter sido iniciado sem que a Igreja Católica oferecesse, em simultâneo, apoio psicológico e psiquiátrico às vítimas que assim o pretendessem. Não se dá “voz ao silêncio”, se não soubermos cuidar da voz que sofre, favorecendo apenas um ruido histérico e ensurdecedor no espaço público. É tempo de tratar com urgência destas “vozes” e ajudar a cicatrizar as suas feridas psicológicas.