No atletismo, na natação ou na ginástica, os US Trials são um mundo de oportunidades. À primeira vista, as competições servem sobretudo para fazer a eleição dos melhores entre os melhores para as grandes provas internacionais. No entanto, e desde sempre, são avaliadas a dois níveis. Fazer determinada ou pontuação pode dar acesso à prova X mas olha-se muito para o valor da marca para se perceber se conseguirá um dia chegar a objetivo Y ou Z. Quando no primeiro ano pela Universidade de Luisiana, em 2019, Sha’Carri Richardson bateu o recorde universitário com 10,75 e ficou entre as dez mais rápidas de sempre aos 19 anos, entrou no radar. Quando em abril de 2021 baixou para 10,72 e se tornou a sexta mais rápida de sempre (a quarta norte-americana), ninguém tinha dúvidas. Ninguém a não ser uma pessoa: a própria.

A atleta nascida em Dallas nunca chegou a conhecer a mãe biológica e foi criada pela avó e por uma tia entre dificuldades como mais tarde viria a admitir. O gatilho para as questões, esse, aconteceu apenas uma semana antes da qualificação para os Jogos Olímpicos e quando um jornalista lhe perguntou pela morte da mãe que nunca conheceu. Até esse momento, Sha’Carri nem sequer sabia que perdera a progenitora. “Ela deveria ser o meu mundo e agora que não estava lá, costumava perguntar-me ‘Porque estou aqui?’. Isso levou-me até a um lugar muito sombrio”, admitiu. E foi esse estado que a levou a tomar opções que mais tarde lamentou.

Mais recentemente, numa entrevista a propósito de saúde mental, a norte-americana assumiu que tinha pensado no suicídio. “Quando estava no secundário passou-me pela cabeça. Ficava sempre tipo ‘Vais-me deixar?’ para a minha tia. Mas até agora, ela nunca me deixou. Eu sabia que precisava disso e quando ela me deu, eu sabia que a minha vida se tinha transformado. Não posso cair agora”, destacou sobre a importância da tia, Shayaria Richardson, na sua vida. Mais tarde, naquele momento em que soube da notícia da morte da mãe, voltou a afundar-se e, num ataque de ansiedade, fumou cannabis. Quando saíram os testes já depois da qualificação para os Jogos de Tóquio, e apesar dos pedidos de vários atletas para que o contexto pudesse servir de atenuante (até o presidente dos EUA, Joe Biden, sugeriu que poderiam ser feitas algumas alterações nas regras a partir daí), foi suspensa por um mês. Por uma semana, falhava o sonho olímpico.

Numa primeira instância, Sha’Carri Richardson falou em racismo para justificar o castigo, comparando o seu caso com o da patinadora russa Kamila Valieva, que apesar de ter acusado trimetazidina (substância proibida pelo regulamento da Agência Mundial Anti-Dopagem) participou nos Jogos Olímpicos de Inverno tendo como argumento “o dano irreparável perante as circunstâncias” que poderia ser causado caso o teste positivo não fosse confirmado. “Podemos obter uma resposta séria sobre a diferença entre a minha situação e a dela?”, questionou no Twitter. “Está tudo na cor de pele, a única diferença que vejo é o facto de ser uma jovem negra”, criticou a norte-americana, recordando que o cannabis não melhora o rendimento. “Falhei e o mundo sabe disso, o meu resultado foi publicado e o meu nome e talento foram sacrificados”.

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Mais tarde, numa entrevista à NBC, Sha’Carri Richardson quis apenas assumir o erro. “Quero ser responsável pelas minhas ações. Sei o que fiz. Sei que não era para fazer e que não tinha permissão para fazer mas tomei essa decisão de qualquer maneira. Não procuro desculpas, não procuro empatia. Sou humana, somos todos humanos. Quero ser o mais transparente possível, seja em situações boas ou más, mas quando se trata de Sha’Carri Richardson, nunca haverá o termo esteroide ligado ao meu nome. O produto de que estamos a falar é cannabis. A notícia da morte da minha mãe deixou num estado de pânico emocional mas, apesar de tudo, tinha de ser capaz de sobreviver e fazer uma prova para viver o meu sonho”, salientou.

Em 2023, Sha’Carri como que tentava recomeçar onde tinha ficado, em 2021, e a vitória na Liga Diamante de Doha com 10,76, bem como a qualificação para os Mundiais de Budapeste com 10,82, abriam esperança para um bom resultado na Hungria. “Hoje já não estou preocupada com o mundo. Vi que o mundo foi meu amigo, vi o mundo virar-me as costas mas, no final do dia, esteve sempre comigo. Deus esteve sempre comigo e este é o meu tempo. É tempo de fazer algo por mim e pelas pessoas que se sentem como eu, que se parecem comigo, que sabem a verdade sobre si. Eu represento essas pessoas”, frisara à NBC a atleta conhecida pelos penteados excêntricos, pelas tatuagens e pelas longas unhas inspirados em Florence Griffith Joyner.

A qualificação não foi propriamente fácil. Apesar de ter feito o terceiro melhor tempo das meias-finais com 10,84, a norte-americana teve de passar pelas repescagens por ter acabado atrás de Shericka Jackson e de Marie-Josée Ta Lou. Foi por isso que acabou por cair na pista 9, uma das pistas de fora que trazem uma dificuldade extra na corrida. E quando todas as atenções estavam focadas nas duas jamaicanas que iam dominando o panorama da velocidade, Shericka Jackson e Shelly-Ann Fraser-Pryce, Sha’Carri Richardson bateu o recorde dos Campeonatos do Mundo e ganhou a medalha de ouro com 10,65, terminando a corrida com um olhar incrédulo perante aquilo que estava a acontecer. Depois, houve a explosão de alegria, muitos parabéns das adversárias e das bancadas e as imagens para a posteridade. Estava feita história.