No “Ripley” da Netflix irrita o exagero da imagem (ou da cinematografia, como agora tão irritantemente se diz) – está entre o “300” do Zack Snyder e a tentativa de “La Dolce Vita” do Fellini. Com lugares tão bonitos apetece dizer ao realizador: filma apenas e deixa-te de tretas. Mas cá em casa vimos os episódios num bom ritmo também porque fascina uma personagem desconvicta de si mesmo, como o Ripley é. As pessoas que não acreditam na sua autenticidade são sempre as que me parecem mais autênticas.

Gosto de impostores, ladrões, charlatães e todos os que não vivem em função da paz que encontraram dentro de si mesmos. Impostores, ladrões e charlatães têm para mim a virtude de, ao quererem algo que originalmente não lhes pertence, manifestarem que a pior miséria pode ser não desejar nada além de nós mesmos. Faço por não ser impostor, nem ladrão, nem charlatão. Mas todos os momentos mais libertadores que vivi pressupuseram a admissão que, por muito que me esforçasse, não passava de um impostor, de um ladrão, de um charlatão.

O Tom Ripley é uma personagem talvez ainda mais interessante nesta série televisiva por esse auto-abandalhamento identitário. Numa época que encontra em qualquer identidade um El Dorado, sabe bem ver alguém à deriva dentro de si próprio – serão os despersonalizados os próximos libertadores, quero acreditar. Se a maior virtude é a busca épica e virtuosa pelo eu, emociona um intruja que comete crimes por querer ser outro.

Na linguagem da teologia, John Frame diz que não conhecemos Deus sem conhecer também as nossas tentativas estúpidas de tentarmos ser ele. Passamos a vida a julgar que somos Deus e passamos a vida a querer tornar Deus o que Deus não é. A melhor maneira de acreditar nele é, portanto, sermos sensíveis às imitações. Para mim, que sou cristão, quem é o sujeito que melhor conheço que mais se faz passar por Deus? Eu próprio, claro. Sou um patético Ripley até na versão teológica mais rasteira.

Frame vai mais longe: “Deus é aquele que é em oposição àqueles deuses que não são”. Olhem o paradoxo: só distinguimos o produto real quando lidamos com o contrabando. Por isso é que precisamos mais de Ripleys e menos de produtos supostamente originais. Um dos problemas mais graves dos nossos dias é o excesso de essência. Não temos cultivado a imitação, de tão encontrados que estamos com o que é único. Acontece que, grande parte das vezes, a imanência é uma seca.

Que linda é a pessoa que não se descobriu ou que, ao descobrir-se, se entediou.

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