Voltar a Lisboa depois de umas semanas fora obriga ao confronto renovado com notícias, desabafos e partilhas sobre habitação, higiene urbana, impostos e o modo de vida atual nas cidades (correção: em Lisboa como em muitos outros centros urbanos). Mais ainda quando decidimos ver os quatro episódios de “The Architect”, série norueguesa que explora estes e outros temas. Lisboa e Oslo são muito diferentes, mas particularmente a habitação gera questões e desafios com um tronco comum. “The Architect”, considerada a melhor série da última edição do Festival de Berlim, consegue em hora e meia explorar um problema real, num futuro que não parece assim tão distante, com problemas bem presentes, agravados apenas pela ideia “isto para a frente só vai ficar pior”. Nas entrelinhas, sabe-se que grande parte da cidade foi comprada por gente da Califórnia que não vive em Oslo, e que boa parte da construção tem origem nas mesmas pessoas, sem qualquer empatia por quem fica na cidade, a viver e a trabalhar.

Oslo é então um deserto. Não é suja como Lisboa, mas parece desabitada como se poderá imaginar Lisboa daqui a uns anos, se os turistas saltarem do barco da vida loca lisboeta. Em “The Architect”, a capital norueguesa é uma cidade sem foco. E é aí que entra a protagonista, Julie (Eilie Harboe), em frente a uma caixa multibanco futurista a ver se já consegue ter crédito para uma hipoteca. A resposta é negativa e se quiser falar com um gestor de conta — que quiser encontrar um toque humano — isso tem um grande custo. Julie é a arquiteta do título, mas não exerce a profissão. Trabalha num atelier de arquitetura, mas ficou presa como estagiária. Está há anos assim, ninguém alguma vez se ofereceu para a ver de outra forma. Ela bem tenta. Ganha pouco e o que tem é insuficiente para pagar uma renda de um apartamento que continua a ser aumentada pelo senhorio.

[o trailer de “The Architect”:]

Eis que entra o mercado. Numa das primeiras cenas, vemos Julie à procura de um sítio para viver. A situação está tão mal em Oslo que há quem comece a arrendar espaços em parques de estacionamento — que já não são usados — para habitar. Os lugares são divididos por cortinas e há algumas regras entre os inquilinos: uma das quais diz “ninguém se intromete na vida nem nas coisas dos outros”. A solução não é solução. Julie é apenas uma quase sem-abrigo que consegue pagar por uma muito limitada privacidade (e alguma eletricidade).

Esta situação dinamiza uma ideia revolucionária na cabeça de Julie, que é também a forma que tem de se afirmar como arquiteta no seu trabalho e vencer um prémio que possibilitará ambicionar uma conversa diferente com o seu banco. Com o mercado sempre a explorar novas formas de construir e mais barato, sai uma nova lei que permite construir habitações sem vidro e sem janelas. Em simultâneo, o atelier de Julie está inscrito num concurso para construir mil habitações no centro de Oslo. Problema: não há espaço no centro de Oslo. É uma tarefa que todos julgam impossível, incluindo o “miúdo maravilha” Marcus (Fredrik Stenberg Ditlev-Simonsen), ex-colega de universidade de Julie e também ex-namorado, arquiteto em ascensão que também se debate com problemas de habitação.

Eis então que Julie junta a sua experiência presente ao futuro das habitações na cidade: aproveitar os parque de estacionamento e construir umas caixas onde pessoas poderiam viver. No fundo, é onde já vive, apenas desenha substitutos para os cortinados, garantindo mais privacidade e possibilidade de intimidade (e acesso mais facilitado a energia). Mas o problema mantém-se: a deterioração da qualidade de vida. Quem vai investir nesse projeto? As tais pessoas vindas da Califórnia, que nunca vemos (e que, no fundo, são uma personificação abstrata dos Fundos de Investimento), as oportunidades de fugir a impostos, fazer mais dinheiro, as cidades onde se vive no papel para conseguir um qualquer direito noutro documento. A esperança que “The Architect” quer deixar é  ade que de facto não se chegue a este ponto. Em Oslo, em Lisboa, noutra cidade qualquer.

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