No passado recente, têm existido olhares desafiantes sobre a parentalidade através de obras de ficção. Desafiantes, em parte, porque quebram a norma, abrangem normalidades que nem sempre queremos aceitar, como a inexperiência, o choque, a exaustão, a ternura e o amor, mas através de histórias que têm um pressuposto negativo (no mínimo) ou maléfico (no máximo). Os exemplos que se seguem ligam-se mais à experiência vivida, às formas como as relações se podem deteriorar e como tudo pode ser questionado. O romance Instinto, de Ashley Audrain, por exemplo, coloca a protagonista a questionar a inocência da filha na morte do irmão mais novo. O romance manifesta o amor, a insegurança e o cansaço de uma mãe através da dúvida: ela vê algo que os outros não estão a ver. O leitor vê a história através dos olhos da mãe e, pela forma como os factos são apresentados, embarca-se numa visão algo tenebrosa pela maternidade: no fundo, um thriller, em que o questionamento surge pelo enviesamento da razão da protagonista.
A série “The Baby” (HBO Max) testou limites. O bebé enquanto criatura malvada não é novidade (regressemos a “A Semente do Diabo” de Roman Polanski a qualquer momento), mas e se esta criança só estiver à procura de uma mãe para cuidar dela, no fundo, que a suporte? A arrojada proposta funciona porque vai ao exagero através da situação pela comédia.
Esta conversa serve para chegarmos ao presente e a “The Changeling”, série de oito episódios que se estreia na Apple TV+ esta sexta-feira, 8 de setembro, um feito magnífico sobre a parentalidade, sobre relações familiares, da nova e da velha família. Tudo em volta de um pai, Apollo (LaKeith Stanfield), que aceita uma Nova Iorque de fantasia para encontrar a sua mulher depois desta ter matado o filho. Nem tudo é agonizante, o fantástico alimenta uma esperança contínua ao longo dos episódios, até porque parte do desafio de “The Changeling” passa por escolher o que queremos aceitar como realidade.
[o trailer de “The Changeling”:]
Adaptação do romance de Victor LaValle — que narra a série de televisão — por Kelly Marcel (escreveu os argumentos de “As Cinquentas Sombras de Grey” e a trilogia de “Venom”, um dos maiores inimigos do Homem-Aranha), estes oito episódios mostram, mais uma vez, que, no contexto atual, a Apple TV+ é quem arrisca mais em formatos pouco ortodoxos para televisão e aceita o risco de experimentar o que pode correr muito mal. “The Changeling” talvez não seja para todos, não pelo terror ou pelo fantástico, nem pelos aspetos macabros da história, mas pela forma como deixa o espectador num limbo entre o real e o sobrenatural, como mostra o poder que tem uma narrativa bem construída. Uma história bem escrita pode fazer-nos crer na maior das mentiras ou aceitar a mais cruel das verdades.
Os três primeiros episódios estreiam-se em simultâneo, funcionam como uma introdução, como o lado do portal onde existe maior contacto com o real. Entra-se no início da relação de Apollo e Emma (Clark Backo), ambos apaixonados por livros. Para ele, foi uma forma de escape à realidade em casa, de um pai que fugiu e de uma mãe ausente que estava sempre a trabalhar. O seu mundo foi alimentado por histórias. A relação de Emma com os livros também tem um pressuposto familiar semelhante, mas no caso dela ajudou-a a criar uma proximidade com bibliotecas, por isso, virou bibliotecária. É precisamente numa biblioteca em Nova Iorque que se conhecem e após várias insistências de Apollo, ela aceita um jantar. Fica-se a saber que as recusas anteriores dela se deviam à possibilidade de mudar-se para o Brasil em breve, sem data de retorno. Por lá, tem um encontro com uma bruxa e cria uma espécie de pacto que irá mudar a vida para sempre.
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▲ “The Changeling” é um ovni, um desafio, uma experiência imprevista que consegue esconder, sempre, aquilo que irá mostrar
Volta, casam, têm um filho. E é aqui que as coisas começam a ficar negras. Ela não acredita que o seu filho é, de facto, o seu filho, mas que é um monstro. Estabelecem-se paralelos interessantes com a experiência da maternidade — que, ao longo da série, reaparecem através da experiência de outras mães ou casais — e a mudança de Emma acontece com justificação. Por outro lado, Apollo tem uma ligação ótima com o bebé, cumpre o seu desejo de ser um bom pai. As experiências contrastantes convidam o espectador a questionar a atitude da mãe e a criar uma relação diferente com Apollo: as excelentes interpretações de Lakeith (um dos melhores atores da atualidade) e de Backo ajudam a que “The Changeling” seja equilibrada e que o espectador abrace a viagem dos protagonistas.
Ao quarto episódio, “The Changeling” muda. Abraça o desconhecido com convicção e fica difícil de perceber para onde se dirige. Sem entrar em detalhes, é uma assombrosa viagem pelo fantástico, lembrando as loucuras de “Lovecraft Country” (HBO Max), mas em volta da família. Os dois últimos episódios são fascinantes, o penúltimo, em volta da mãe de Apollo (interpretada por duas atrizes, Adina Porter e Alexis Louder), reforça a importância dos livros e das narrativas. O último é a concretização do fantástico, do medo e do desconhecido como poderes absolutos. “The Changeling” é um ovni, um desafio, uma experiência imprevista que consegue esconder, sempre, aquilo que irá mostrar.