São breves segundos que ilustram a aparente descida aos infernos de um clube que já tocou os céus. Em pleno Philips Stadion, em Eindhoven, um adepto do PSV aproveitou o Halloween para vestir um lençol e correr à volta dos adeptos do Ajax enquanto fantasma. No lençol, em neerlandês, lia-se “fantasma da descida”: o fantasma que tem roubado o sono ao universo da equipa de Amesterdão.

Este domingo, o PSV Eindhoven goleou o Ajax e engrossou a enorme crise que o clube atravessa — num jogo em que até marcou primeiro e esteve a ganhar em duas ocasiões, permitindo a reviravolta e o autêntico descalabro na segunda parte. Atualmente, ainda que com duas jornadas em atraso, o Ajax está no último lugar da Eredivisie com apenas cinco pontos conquistados entre cinco derrotas, dois empates e uma única vitória, carimbando já o pior arranque de sempre. Ao mesmo tempo, na Liga Europa, empatou com o Marselha e o AEK e perdeu com o Brighton, ocupando o último lugar do Grupo B.

Se é certo que a temporada passada já não tinha sido brilhante, entre o terceiro lugar no Campeonato a 13 pontos do campeão Feyenoord e a eliminação na fase de grupos da Liga dos Campeões, a verdade é que esta época está a trazer o impensável “fantasma da descida”. O Ajax é o clube mais bem sucedido da história dos Países Baixos, com 36 Campeonatos e 20 Taças, foi campeão europeu em quatro ocasiões e nunca foi despromovido ao segundo escalão do futebol neerlandês. Assim sendo, como é que chegou aqui?

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Para o explicar, na verdade, é preciso recuar até fevereiro de 2022. No início do ano passado, depois de uma década enquanto diretor desportivo do Ajax, Marc Overmars demitiu-se na sequência de várias acusações de assédio por parte de funcionárias. Apesar de a saída do antigo jogador neerlandês ter sido a solução encontrada para limitar os danos do escândalo, o lugar deixado vago nunca teve substituto à altura e foi a primeira escorregadela de um castelo de cartas que acabou por ruir.

No verão do mesmo ano, Erik ten Hag saiu e rumou ao Manchester United, deixando o Ajax órfão de um treinador que conquistou três Campeonatos e duas Taças e ainda chegou à meia-final da Liga dos Campeões de 2019. A saída do treinador neerlandês, que estava no clube desde 2017, colocou um ponto final numa era que já tinha começado a desmoronar-se com a transferência de muitos dos elementos cruciais da tal campanha europeia que só terminou com a eliminação frente ao Tottenham: entre Frenkie de Jong, Matthijs de Ligt, Donny van de Beek e muitos outros.

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Ten Hag saiu e o Ajax nunca recuperou a identidade que o treinador parece ter levado consigo para Inglaterra. Nesse mesmo mercado de transferências, já sem a influência de Overmars, o clube de Amesterdão perdeu Ryan Gravenberch, Lisandro Martínez, Antony e Sébastien Haller, com a temporada a terminar com o tal terceiro lugar no Campeonato e uma troca no comando técnico, já que Alfred Schreuder acabou por ser despedido e substituído pelo interino John Heitinga.

Quase ao mesmo tempo, em maio do ano passado, o Ajax perdeu outra referência: Edwin van der Sar, diretor-geral do clube há 11 anos, decidiu deixar o cargo por estar “exausto”, acabando por sofrer uma grave hemorragia cerebral cerca de dois meses depois. Neste contexto e a precisar de preparar 2023/24, os neerlandeses escolheram Maurice Steijn como novo treinador — cuja principal nota de currículo era um 6.º lugar com o Sparta Roterdão na temporada passada — e ainda contrataram Sven Mislintat para render Marc Overmars enquanto diretor desportivo.

Com um percurso que integrava passagens pelos departamentos de scouting do Borussia Dortmund e do Arsenal, o alemão foi o principal responsável por mais um verão muito marcado por várias saídas: Jurrien Timber rumou ao Arsenal, Edson Álvarez e Mohammed Kudus assinaram pelo West Ham, Dušan Tadić e Davy Klaassen saíram a custo zero para Fenerbahçe e Inter Milão. Em sentido contrário, o Ajax gastou mais de 100 milhões de euros em vários reforços, ainda que praticamente todos estejam ainda à procura de justificar a aposta e o investimento.

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Sven Mislintat, contudo, não durou muito. Deixou o Ajax logo em setembro, não só pelo tal pior arranque de sempre, mas também devido a suspeitas relativamente à contratação do croata Borna Sosa, que terá acontecido através de uma agência com ligações a uma empresa do alemão. Sem referências de peso e a navegar num autêntico pânico, o clube virou-se para o que já conhecia: já em outubro, Louis van Gaal aceitou novamente sair da reforma para assumir o cargo de assessor dos neerlandeses, uma espécie de conselheiro externo para “dar uma volta positiva” à atual situação.

A “volta positiva”, porém, ainda não aconteceu. O Ajax continua a ter apenas uma vitória em oito jogos disputados no Campeonato e a temporada já está marcada por momentos sem precedentes, como o Clássico contra o Feyenoord que acabou interrompido por violentos protestos dos próprios adeptos e acabou com uma goleada após ser retomado dias mais tarde. Maurice Steijn não resistiu, acabando por ser despedido com a pior média de resultados da história do Ajax, e foi substituído temporariamente por Hedwiges Maduro, que perdeu com o Brighton e o PSV.

Esta segunda-feira, um dia depois da goleada sofrida em Eindhoven, o Ajax voltou a deixar claro que vai continuar a apostar no que já conhece e anunciou o regresso de John van ‘t Schip, que vai ser treinador interino até ao final da temporada para depois integrar a direção técnica do clube. Aos 59 anos, Van ‘t Schip volta ao clube onde jogou entre 1981 e 1992, conquistando quatro Campeonatos, e onde já foi treinador adjunto, treinador interino e treinador das camadas jovens. Pelo meio, nas últimas duas décadas, orientou Twente, Melbourne Heart, Chivas, Melbourne City, PEC Zwolle e ainda a seleção da Grécia.